float(9) float(2) float(4.5)

Crítica


6

Leitores


2 votos 9

Onde Assistir

Sinopse

Em seis cidades brasileiras, artistas e intelectuais negros discutem a representação da negritude, o ativismo através da arte e a possibilidade de ultrapassar uma noção excludente de identidade nacional.

Crítica

O documentário parte de pressupostos fortes: o conceito de identidade brasileira seria um engodo e a brasilidade refletiria uma criação eurocêntrica, incapaz de incorporar o percurso de indivíduos negros no país. Por isso, o diretor Macca Ramos decide dar um passo atrás e escutar diversos artistas negros sobre as diferentes maneiras de expressarem sua cultura e combaterem a percepção branca hegemônica. Filmes mais convencionais limitariam os artistas à produção de obras, e deixariam as reflexões a sociólogos, filósofos e demais pensadores. Um dos méritos da direção consiste em enxergar as dezenas de entrevistados como articuladores de propostas igualmente válidas sobre a negritude. Poetas, pintores, dançarinos, músicos, atores, e também sociólogos e uma deputada estadual dividem a fala ao traçarem um painel amplo a respeito da relação entre o Brasil e a ancestralidade africana, as ferramentas de luta, a ocupação do espaço urbano e as respostas ao preconceito. Ao invés de mergulhar num aspecto específico, o cineasta possui a ambição de expandir o escopo o máximo possível, tanto em personagens quanto em subtemas.

A montagem possui uma proposta interessante para costurar o discurso. Ao invés de organizar o filme por temporalidade ou por grupos temáticos (um segmento apenas sobre racismo, outro sobre religiosidade etc.), Ramos, também montador, permite que as falas se conectem por associações livres. Isso significa que a menção de uma bailarina sobre o corpo suspenso, voltado para o alto, conduz a narrativa a uma apresentação musical com o verso “Tira o pé do chão”. A menção à miséria atrai o poema Tem Gente com Fome, de Solano Trindade; adiante, uma rápida citação ao Carnaval revela a bateria da Vai-Vai, enquanto a discussão sobre o devir feminino se conecta com a fala de uma educadora transexual. Deste modo, o filme se desenvolve numa corrente circular, uma articulação lúdica onde nenhuma pessoa ou conflito se sobrepõe aos demais em termos de tempo de tela ou importância. Em contrapartida, o roteiro se torna vasto até demais: há tantas questões debatidas, abandonadas e retomadas em seguida (a umbanda e o candomblé, em especial) que o conteúdo jamais se aprofunda em qualquer uma delas.

A generosidade de encontros e cidades sugere que a quantidade de vozes se torna mais importante do que a capacidade de cada uma delas desenvolver seus pensamentos. Pessoas como Érica Malunguinho e Salloma Salomão, por exemplo, possuem falas tão ricas que talvez pudessem ser aproveitados com mais cuidado. No entanto, o filme extenso até demais transparece a dificuldade de abrir mão de parte de seu material, o que implicaria em perder algum dos potentes testemunhos (consequência típica de projetos onde o diretor também assume a edição). Assim, o terço final se arrasta, rompendo com a articulação agradável que o documentário apresentava até então. No entanto, Ramos evita as armadilhas da cartilha acadêmica: ao invés de apostar na simples alternância entre depoimentos e materiais de arquivo, introduz sequências poéticas de dança, performance visual, fotografia, música etc. Logo, os criadores têm suas opiniões representadas tanto pelas palavras quanto pelas obras, sustentando a noção de coerência política, ou seja, dos artistas que vivem de acordo com a ideologia que pregam.

Paira uma noção de comunidade entre os personagens, ainda que o cineasta ignore eventuais discordâncias entre os pensamentos plurais. O documentário poderia se abrir às fricções entre gerações, gêneros ou apenas correntes estéticas e partidárias dentro dos setores progressistas e dos movimentos negros. Embora Érica Malunguinho esteja presente no segmento final, o filme tampouco se arrisca pela política institucional, cujas articulações com a arte poderiam ser frutíferas. Mesmo assim, Ramos procura ser abrangente e respeitoso com todas as vozes presentes, deixando que falem por si próprias sem condicionar excessivamente o caminho das entrevistas. Ainda que o tom porte uma solenidade, fruto do respeito à complexidade do tema, o filme sustenta a aparência de uma conversa mais fraterna do que acadêmica. Os artistas são convidados a comentarem as suas obras de maneira acessível, sem simplificar os significados das mesmas, nem impedir que o espectador trace interpretações por conta própria. Há uma preocupação louvável em democratizar o acesso às manifestações, às vezes pouco conhecidas, destes artistas.

Negro em Mim (2020) sofre com problemas técnicos decorrentes da ânsia de multiplicar focos, personagens, cidades e circunstâncias. A mixagem de som trabalha com um desnível entre falas, trilha sonora e ruídos, enquanto a direção de fotografia demonstra limitações em algumas sequências (caso do intenso foco de luz jogado sobre os rostos silenciosos de pessoas negras, e da luz de baixo para cima no rosto de Salomão). A projeção de estampas em chroma key jamais produz um resultado expressivo dentro do debate proposto, enquanto o close-up extremo de três atores ensaiando numa praça desperta curiosidade quanto à escolha de enquadramentos. Determinadas conversas possuem som impecavelmente controlado, já outras parecem obtidas às pressas, caso em que o conteúdo das falas teria sido priorizado à qualidade da captação. Ressalvas à parte, o documentário efetua um cruzamento orgânico entre ativismo e arte, destacando talentos da cultura negra por diferentes partes do país (apesar da predominância paulistana), de modo afetuoso e politicamente assertivo.

Filme visto online na 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2021.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *