Nunca Raramente Às Vezes Sempre
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Eliza Hittman
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Never Rarely Sometimes Always
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2020
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EUA / Reino Unido
Crítica
Leitores
Sinopse
Autumn tem 17 anos. Ela cresceu em um ambiente de classe trabalhadora na zona rural da Pensilvânia, onde a vida é tranquila. Agora, diante de uma gravidez indesejada, tem certeza de que não pode contar com a família para obter apoio.
Crítica
Tudo o que o espectador precisa descobrir sobre Autumn (Sidney Flanigan), ele o faz ao vivo, enquanto as ações estão acontecendo. Não há qualquer forma de narração, nem da garota nem de terceiros, destinada a apresentar o contexto de classe média-baixa em que ela vive. A garota não reclama de sua condição desfavorável a quem quer que seja. Mesmo quando é insultada durante uma apresentação musical, ela se recompõe e segue adiante. Deste modo, Nunca Raramente Às Vezes Sempre possui uma crença fundamental na imagem enquanto vetor narrativo por si própria: ao vermos Autumn e a prima Skylar (Talia Ryder) trabalhando como caixas de supermercado, compreendemos que possuem baixa renda, ao percebermos a indiferença da mãe dentro de casa, sabemos que provêm de meios familiares desequilibrados, ao perambularem friamente entre os colegas de escola, deduzimos que possuem dificuldades de inserção social.
Do mesmo modo, a descoberta da gravidez de Autumn e a decisão de buscar uma clínica de aborto se esclarecem ao espectador enquanto essas atividades já estão acontecendo. A adolescente jamais confessa à prima: “Estou pensando em abortar”, ou algo do tipo. De repente, ela sobre num ônibus, entra numa clínica e uma mulher de branco lhe pergunta: “Você tem certeza dessa decisão”? A diretora Eliza Hittman (do belo Beach Rats, 2017) suprime toda muleta narrativa destinada a guiar o espectador pela mão, ou construir suspense. Nunca somos convidados a rir, chorar ou temer por elas – ou seja, a história não é apresentada para nosso entretenimento. Qualquer fator que possa ser compreendido apenas por gestos e expressões será efetuado sem diálogos, resultando em cenas potentes, imediatas. O recorte temporal sucinto – toda a narrativa se desenvolve em três ou quatro dias – permite que muitas sequências se aproximem do tempo real, da experiência de estar junto das duas garotas, a todo instante, quando decidem sair da Pensilvânia até Nova York em busca do término da gravidez.
Este posicionamento da direção se revela essencial, tanto em termos humanistas quanto cinematográficos: a câmera está sempre do lado de Autumn, enxergando apenas o que ela enxerga. Hittman se recusa a abandonar a protagonista por um minuto que seja, relatando passo a passo, desde as viagens de ônibus até a busca de um lugar para dormir, apesar da falta de dinheiro. Seria fácil ignorar as partes menos empolgantes do processo (como efetuou Juno, em 2007, suprimindo todo o período da gravidez), ou saltar aquilo que não fosse cinematograficamente impactante – caso em que tantas esperas e incertezas pelos saguões de clínicas e metrôs ficariam de fora. Ora, a cineasta evita a colagem de grandes felicidades e tristezas profundas, buscando um tom cru, sem embelezamentos, no qual se torna necessário acompanhar cada momento. O espectador é colocado não apenas na posição de testemunha, mas também de cúmplice. Mesmo na mesa de cirurgia, quando a prima não pode estar junto da garota, nós presenciamos a travessia de Autumn.
A decisão de transformar o aborto em um processo, ao invés de um ato pontual, serve a desmistificar alguns preconceitos relacionados à prática. A ideia de que a intervenção poderia ocorrer de modo descompromissado ou fútil soa absurda no caso de Autumn, enquanto a longa trajetória de medo, culpa e incertezas (Vai doer? Como vou pagar? Meus pais vão receber uma indicação disso na fatura?) atesta a provação psicológica, além de física, pela qual passam estas mulheres. Nunca Raramente Às Vezes Sempre (título curioso, porém justificado na cena mais dura e bela do filme) constitui uma obra feminina que não julga as suas mulheres: nunca se sabe de quem Autumn engravidou, nem em que circunstâncias, porque isso não importa, visto que a decisão de manter ou retirar o bebê cabe apenas a ela. O projeto é dirigido, roteirizado, produzido, fotografado e musicado por mulheres, o que se traduz no respeito pela intimidade e pelas dores da personagem, assim como na imagem pudica e, ao mesmo tempo, sem tabus, de seu corpo.
A decisão de trabalhar com close-ups no rosto da protagonista durante 90% das cenas se revelava arriscada, porém Hittman conta com uma atriz fenomenal, que sustenta cada uma dessas imagens. A estreante Sidney Flanigan carrega a rispidez de atores sem técnica, enquanto demonstra uma entrega e uma naturalidade absurdas diante da câmera. As minúsculas e preciosas transformações de expressão ao longo desta jornada se tornam fundamentais para percebermos o turbilhão de emoções que afetam a garota taciturna. Talia Ryder, no papel da prima astuta, completa a bela dupla de mulheres inteligentes, porém não idealizadas nem vitimadas. A câmera possui em relação às duas personagens um olhar de igual para igual, como se enxergasse em Autumn e Skylar uma delas. Com acréscimo do belíssimo trabalho de luz e uma montagem precisa (com elipses invisíveis, finas), Hittman atinge um filme de impressionante contenção de sentimentos e controle estético, e ainda mais forte pela empatia que consegue transmitir através de recursos tão sisudos.
Filme visto no 70º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2020.
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