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Sinopse

Ao longo da viagem pelo alto Rio Negro, é revelada a língua imposta pelos colonizadores aos povos originários.  

Crítica

O Nheengatu é um idioma criado após a chegada dos portugueses ao Brasil, tendo como base o tupi-guarani aprendido pelos colonizadores na costa do país, mesclado a outros dialetos indígenas e a expressões portuguesas. É atrás dos falantes desta língua que o cineasta lisboeta José Barahona parte no documentário Nheengatu, percorrendo o curso do Rio Negro, do Brasil até a fronteira com Colômbia e Venezuelapaíses onde o idioma também é utilizado. Acompanhado de uma pequena equipe técnica e de seu guia/tradutor, Edson, o diretor visita diversos povoados em busca de relatos sobre as origens, o desenvolvimento e a preservação do Nheengatu, bem como da cultura indígena de um modo geral. Para isso, recorre a uma narrativa que intercala a captura das entrevistas e do cotidiano dos habitantes locais aos bastidores da viagem, criando um diário de bordo e apresentando variações no aspecto formal.

Parte do registro expõe um notável apuro estético, como o plano-sequência que acompanha o trajeto da canoa cujo tripulante nativo conta a história da criação do homem branco, ou a bela sequência final, na qual a mata refletida nas águas do Rio Negro cria uma espécie de portal natural e místico para o universo particular amazônico. Em diversos outros momentos, porém, Barahona adota um registro quase amador – especialmente para compor as passagens do citado diário de bordoutilizando imagens feitas por câmeras de aparelhos celulares, que são oferecidos também aos próprios índios para que estes filmem livremente aquilo que consideram interessante em seu dia a dia. Essa última proposta, a princípio promissora, acaba não se mostrando tão reveladora quanto se imaginaria, indo pouco além da mera curiosidade, um sentimento que se estende à própria investigação sobre o Nheengatu, com depoimentos que circulam superficialmente sempre os mesmos tópicos – em particular, a percepção da tendência à extinção da língua.

Essa questão do desaparecimento gradativo do Nheengatu está inserida na temática mais ampla do apagamento cultural dos povos indígenas pela imposição da “civilização”, como define uma das anciãs locais, e que tem como um de seus principais braços a religião, das missões católicas à forte presença da igreja evangélica nas comunidades. Ainda que nunca deixe de ser relevante, o olhar de Barahona sobre essas questões macro não chega a trazer algum frescor, de fato, ou a expor algo que já não tenha sido explorado de modo mais pungente em outras obras recentes, como Ex-Pajé (2018), de Luiz Bolognesi, sobre o tema da religiosidade, ou Martírio (2016), de Vincent Carelli, Tatiana Almeida e Ernesto de Carvalho, com seu retrato potente da luta indígena pela preservação de seus direitos. Entre todas as temáticas e tons trabalhados, do lirismo ao resgate histórico, passando pelo viés metalinguístico, o que realmente caba se destacando no trabalho do diretor é o paralelo traçado entre sua missão e a dos exploradores do passado.

Mesmo sem o objetivo colonizador, Barahona e sua equipe não deixam de ser vistos como corpos estranhos naquele meio, e o fato de o diretor ser português só intensifica esse paralelo. A relação estabelecida com os indígenas é ancorada em muita cautela, e toda a dinâmica entre os lados remete em algum grau ao passado. Seja nos acordos pré-filmagens feitos com os líderes das comunidades (um escambo de bens, como comida ou gasolina, pelo direito captar as imagens) ou no perceptível, e compreensível, incômodo – por vezes beirando constrangimento – de parte dos nativos ao terem seu habitat “invadido” pelos homens brancos. Mesmo que as intenções sejam as melhores, fica claro que, em determinados momentos, os índios acabam se sentindo como atrações exóticas, atores encenando sua rotina, rituais, tendo que seguir suas vidas e “fingir que não estão sendo filmados”. Desses leves atritos surgem os episódios mais atrativos e divertidos do longa, especialmente quando os sentimentos são verbalizados.

Conversando entre si em Nheengatu, os índios comentam sobre já estarem cansados de tantas perguntas, especulam sobre o quanto os realizadores irão ganhar às suas custas, fazem piadas com as próprias respostas ou apenas cobram o frango prometido como recompensa pela colaboração. Cenas como aquela em que o líder da aldeia tenta renegociar o combinado ou a do homem que ensina a usar a zarabatana para “caçar brancos” são aquelas que se mostram mais reveladoras, ganhando ainda em complexidade por manterem a dúvida sobre sua completa veracidade: Seriam estas mais uma encenação como aquela apontada pelo próprio Barahona ao analisar imagens de arquivo? Nesta ambiguidade, que brinca com as convenções da linguagem documental, reside o real diferencial que Nheengatu tem a oferecer entre todos os outros temas abrangentes que ambiciona abraçar.

Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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