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Sinopse

O Reformatório Nickel narra a poderosa amizade entre Turner e Elwood, dois jovens afro-americanos que passam juntos pelas angustiantes provações de um reformatório na Flórida, nos EUA. Nesse local, a essência dos garotos parece ser sugada dia após dia, até que não se conheçam mais. Indicado ao Oscar 2025.

Crítica

Essa é uma história de violências e estigmas. Tanto que o próprio título, O Reformatório Nickel, faz menção aos internos de um reformatório estadunidense em meio à ascensão dos movimentos pelos direitos civis afro-americanos. Estigma, pois os rapazes encarcerados no lugar estão condenados a serem chamados durante a vida toda de “os garotos de Nickel”, ou seja, obrigados a conviver com o rótulo. Mas, este longa-metragem indicado ao Oscar 2025 não é a respeito do passado, pelo menos não essencialmente. Até há nele uma linha temporal em que o protagonista está seguindo a vida nos anos 1980, mais de 10 anos depois, carregando as marcas daqueles anos fatídicos quando era brutalizado constantemente por instrutores, professores e diretores. No entanto, trata-se de uma parcela tão ínfima da narrativa que não torna essencial esse ponto de vista do sobrevivente. Aliás, excetuando a ótima surpresa guardada para o encerramento, a visão do “presente” desse personagem que escapou da morte não tem grande relevância dramática. Na linha temporal principal, Elwood (Ethan Herisse) mora com a avó nos agitados anos 1960. Ele sabe das turbulências no país por meio de programas de rádio, TV e jornal. Mais tarde, ao pegar carona enquanto alimenta o desejo de estudar para “ser alguém” e quebrar um ciclo, ele é trancafiado num lugar com meninos em situações semelhantes, no qual a segregação perdura.

O que sobressai imediatamente em O Reformatório Nickel é a opção pela câmera subjetiva como elemento principal da narrativa visual. Enxergamos praticamente tudo por meio da perspectiva de Elwood, do simples descanso sob a sombra de uma árvore frutífera às demonstrações de que muito ainda há de ser feito antes de o país não discriminar pessoas por conta da cor da pele. Trata-se de um dispositivo interessante que, de cara, cria uma dinâmica com duas características principais: literalmente vemos o mundo pelos olhos do protagonista; seus coadjuvantes se comunicam diretamente “conosco”, sem com isso quebrar a quarta parede. Então, tanto nas conversas amistosas com a avó quanto os momentos mais tensos da jornada de Elwood pela instituição (que de correcional não tem nada), somos levados a encarar diretamente os olhares dos outros. O cineasta RaMell Ross faz disso uma bem-vinda demonstração de ousadia e provocação. E, num cinema cada vez mais tomado de convenções e facilidades utilizadas como desculpa para engajamento, é louvável a utilização de um componente tão desafiador como esse. Mas, ainda que seja interessante e potencialmente expressivo, esse dispositivo é bem utilizado? O quanto da carga dramática das situações poéticas e brutais podemos atribuir a ele? De certo ponto em diante, quando esse artifício perde o fator novidade, o subjetivismo se torna um ruído contínuo.

Ruído, porque o ângulo subjetivo acrescenta pouco de particular às cenas. Na verdade, muitas vezes ele gera um simbolismo capaz de anestesiar a selvageria acontecendo no reformatório. Há uma busca pela beleza da imagem e pela representação singular de situações dolorosas que acaba se transformando numa tentativa um tanto artificial de gerar identificação. Ao nos colocar na pele dos personagens e equivaler nosso olhar ao deles, RaMell Ross está dizendo “sintam o quê esses meninos sentem, enxerguem exatamente da maneira como enxergam”. No entanto, para alcançar essa sincronia de perspectivas não é indispensável o artifício literal, pois há outros mecanismos dramático que podem nos levar a um poderoso processo de identificação. Não é preciso que vejamos concretamente pelos olhos de alguém para compreender o seu ponto de vista, o lugar que ele ocupa no mundo. Portanto, ainda que seja absolutamente louvável a tentativa de encontrar novas ferramentas para contar uma história como essa, que a ousadia sempre deva ser festejada como algo fundamental para o cinema não se tornar uma massa uniforme, nem toda iniciativa corajosa é automaticamente bem-sucedida. Isso também diz respeito a alternância de prismas quando entra em cena Turner (Brandon Wilson), o melhor amigo de Elwood. Mesmo tendo dois olhares em vez de um, a narrativa não fica mais dinâmica.

O Reformatório Nickel toca em inúmeros assuntos importantes. E todos eles compõem o ecossistema da segregação racial. É forte a denúncia das instituições formadoras de uma nação que perpetuava práticas escravagistas secretamente enquanto Martin Luther King, Malcolm X e os Panteras Negras marchavam pelas cidades em busca de dignidade. A trama contém vários episódios indicativos da continuidade da opressão branca sobre membros da população afro-americana: “erros judiciais”, tortura física/psicológica, exploração de mão de obra não remunerada, aniquilação da autoestima e das possibilidades de um futuro menos subalterno, etc. No meio disso, surge a amizade, felizmente não idealizada como solução milagrosa para suportar o sofrimento. E a persistência do subjetivismo como forma de emoldurar a realidade aterradora é somente parcialmente bem-sucedida. Como dito antes, a insistência nesse dispositivo causa uma interferência que diminui o vigor em prol de uma poesia melancólica. Ainda que tenham sonhos e anseios pessoais, os personagens são arquétipos de uma situação como essa: o menino vítima das circunstâncias, o valentão subjugado pelas engrenagens racistas do lugar, o melhor amigo amistoso que serve ocasionalmente como voz da consciência, os algozes desalmados, etc. Nos seus demorados quase 140 minutos, o filme entrega suas mensagens, mas com certa indolência.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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