Sinopse
Uma família vive numa terra árida, implorando aos céus por um pouco de chuva. Dentro das nuvens, criaturas escutam o pedido e entram em ação.
Crítica
Sofrendo com a seca, um homem implora aos céus por um pouco de chuva. Em seguida, chove. Quem é responsável por isso? O sujeito que acendeu a vela e se submeteu a uma vontade superior? Seria Deus, algum santo, os ciclos inevitáveis da natureza, ou apenas uma coincidência? É possível supor que o sujeito tenha feito apelos semelhantes anteriormente - sem sucesso, conforme atesta o solo árido. Se foi atendido, por que apenas agora, quando já sofria? Este constitui o questionamento central de Nimbus (2020), uma curiosa fábula sobre a fé. Ao invés de fornecer respostas diretas a estas perguntas, o diretor Marcos Buccini traça uma narrativa onde os significados se bifurcam. Contrariamente a tantas animações que esclarecem suas mensagens de modo a eliminar qualquer dúvida, o projeto pernambucano prefere despertar a reflexão. Talvez isso explique a primeira metade confusa, levando certo tempo até esclarecer quem são os personagens principais, o que estão fazendo, e com qual objetivo. Existe uma verdadeira originalidade na maneira como o tema é formulado pelo autor. Melhor ainda: estes dilemas se convertem no ponto de chegada, ao contrário do ponto de partida. Quando as peças da trama finalmente se encaixam, o roteiro se interrompe, encarregando o público de tirar as conclusões necessárias.
O imaginário das nuvens e de um criador nos céus costuma se relacionar ao paraíso bondoso, aos anjos, à leveza. Em oposição, o diretor oferece uma visão mecânica do sobrenatural: há seres robóticos nas nuvens, operando uma complexa e enferrujada engrenagem responsável pela precipitação. Não existem chefes, nem distinções entre as figuras cinzentas, concebidas com massinha e cobertas de arame. A estética seduz por ir de encontro com a expectativa de animações multicoloridas, etéreas, carregando o aspecto de sonho. Pelo contrário, Buccini privilegia a magia analógica reforçada pelos gestos simplificados do stop motion e pelo desenho da aparelhagem. Desaparecem as figuras de seres gentis ajudando aos humanos e somem os conceitos de resfriamento, condensação e expansão. Contrariamente aos dogmas do cristianismo e aos princípios da física, oferece a disposição de uma usina qualquer. Os trajes idênticos se assemelham a uniformes, enquanto os arames remetem a prisioneiros, ou a figuras torturadas, obrigadas a desempenhar esta função. Em paralelo, o trabalho em baixas luzes e cores escuras - o filme navega entre o preto, o cinza e o azul-marinho - oferece uma imagem pouco convidativa do céu. Em vez de humanizar o transcendental, o discurso transcende a humanidade, levando operários braçais aos céus. Neste aspecto, o humano e o divino se tornam bastante próximos.
Tecnicamente, Nimbus apresenta um trabalho simples, porém minucioso e ajustado ao escopo da produção. O cineasta estabelece o dinamismo através de planos de detalhe e descrições da intricada formação da água. Ao contrário das criaturas desprovidas de subjetividade, os seres humanos transmitem de maneira convincente o sofrimento, a crença numa força provedora e o alívio diante das primeiras gotas caindo. Devido à simplicidade dos bonecos, a trilha sonora carrega nos ombros a responsabilidade de determinar o clima entre o suspense, o épico e a fantasia. Existe um teor reverencial, e ao mesmo tempo assustador, na trilha sonora de Carlinhos Borges, Diego Santana e Thiago Hoover. Uma boa escolha decorre da fusão entre as músicas extradiegética e intradiegética: aos poucos, as criaturas celestes tocam instrumentos de percussão e produzem os sons oferecidos ao espectador, atenuando a fronteira entre o abstrato e o concreto, ou entre a magia e o esforço humano. A apresentação das criaturas poderia ser mais clara, porém o diretor aprecia a possibilidade de revelar aos poucos o intuito de seus personagens - uma escolha arriscada, em se tratando de um filme de 11 minutos. Buccini toma o tempo de seguir um sem-número de alavancas, canos, polias e cristais, num processo que diversos autores teriam simplificado. Aqui, não há pressa em chegar ao desfecho - a ambientação importa tanto quanto os conflitos a resolver.
Ao final, o filme provoca sensações fortes e ambíguas. Pode-se enxergar uma fábula cristã: apesar da ausência de uma representação explícita de Deus, os trabalhadores se dedicam a oferecer uma resposta aos pedidos daqueles em necessidade. “Ora que melhora” seria um lema plausível. Sugere-se o fator de recompensa inerente à retórica de um ser que “age por caminhos misteriosos”, ou “age certo por linhas tortas” - afinal, permitiu o sofrimento do homem até então. Uma segunda leitura diz respeito ao poder da natureza, compreendida no sentido químico, físico e biológico. Ao invés de anjos e deuses, o curta imagina traquitanas capazes de transformar a matéria e devolvê-la à Terra, num ciclo bruto, contínuo e desprovido de julgamento moral. Por este prisma, a chuva cairia em decorrência de fatores meteorológicos contribuindo a este acontecimento. O suplício do homem seria dispensável, ou mera coincidência. A terceira leitura aponta para uma crônica ateia. Não há Deus nem anjos, muito menos um julgamento de mérito por boas ações. Os pedidos aos céus ecoam num vazio completo, e a transformação da fantasia em traquitanas terrestres corresponderia a uma negação do divino. Chove sobre o marido que fez o pedido, sobre a esposa que não o fez, e sobre todos os outros. Chove porque chove - a língua portuguesa oferece a beleza das orações sem sujeito. Inúmeras leituras diferentes dessa também se aplicam. A obra compreende que nossa relação com o além possui alta complexidade, portanto sua representação também deveria possuir.
Filme visto online no VI Cine Jardim: Festival Latino-Americano de Cinema de Belo Jardim, em agosto de 2021.
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