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Sinopse

Um cavaleiro ganha a ajuda inesperada a uma adolescente transmorfa para provar sua inocência diante de uma acusação gravíssima.

Crítica

Baseado nos quadrinhos homônimos de Nate Stevenson, Nimona se passa num curioso mundo futurista com sinais de militarismo medieval. Nele, cavaleiros de armaduras reluzentes convivem com automóveis voadores numa sociedade em que a tradição é o pilar fundamental de sustentação da ordem vigente. Ruas tecnológicas são patrulhadas por guerreiros consagrados como protetores divinos da monarquia, regime construído sobre os princípios do medo. Neste cenário, Ballister (voz de Riz Ahmed) está prestes a ser ordenado cavaleiro, a despeito da origem plebeia. Até então, apenas pessoas de linhagem nobre podiam ser agraciadas com esse título respeitável. A iminente quebra de paradigmas leva a protestos. Ballister é aquele que carrega o fardo de protagonizar a mudança da História, mesmo que isso represente arcar com os resquícios de séculos das várias políticas de amedrontamento. Reza a lenda que uma guerreira erradicou monstros e instituiu protocolos de segurança para evitar o retorno do mal. As gerações posteriores compram isso como verdade, se isolam apavoradas dentro dos muros do reino e temem o retorno das criaturas que elas não compreendem. Este longa-metragem fala de um mundo agenciado e controlado pelo medo, situação que beneficia os privilegiados pelas lendas. Plebeus não podem ascender socialmente senão a ordem pode se desequilibrada. Quem ganha com esses dogmas?

Insistir no chavão de que animação é para crianças seria cometer um equívoco gigantesco. No entanto, talvez esse suporte, como nenhum outro, seja bastante útil para ajudar a enriquecer o imaginário infantil desde cedo, sobretudo tendo em vista a introdução de discursos contra-hegemônicos. Nimona fala da organização social que beneficia uma minoria privilegiada, cujos abalos vistos como perigosos são bem-vindos para mudar paradigmas e ampliar o acesso à liberdade. Além de enfrentar a desconfiança da população sequestrada pela tradição, o bravo cavaleiro Ballister namora um dos seus colegas de armada, Ambrosius (voz de Eugene Lee Yang), nobre descendente direto da heroína impressa nas lendas. E antes que qualquer leitor de pensamento mais conservador se indigne com a suposta “novidade” progressista de dois soldados vivendo um relacionamento homossexual diante dos olhos de todo mundo, recomenda-se pesquisar sobre o Pelotão Sagrado de Tebas, a elite de guerreiros espartanos formada exclusivamente por casais gays. Então, o relacionamento de Ballister e Ambrosius não é somente bem-vindo do ponto de vista representativo por romper padrões atuais, mas também como resgate histórico. Feita a proposta e voltando ao enredo, Ballister é transformado num pária pela conspiração que o faz parecer regicida. Os diretores Nick Bruno e Troy Quane mostram que as aparências enganam.

Eis que em seu percurso como procurado por regicídio, Ballister se depara com Nimona (voz de Chloë Grace Moretz), transmorfa divertidíssima que oferece ajuda ao sujeito marginalizado. Ela própria é vítima dos julgamentos condicionados pela assimilação da narrativa que beneficia as tradições. Todos no reino foram educados para temer aquilo (e aqueles) que não compreendem, para defender com unhas e dentes a manutenção do status quo que pretensamente mantém tudo funcionando. Desse modo, Nimona é uma alegoria pertinente dos nossos tempos em que os discursos tradicionais/fundamentalistas se assanham agressivamente contra tudo que fere a ideia hegemônica do que seria “natural”. A ira coletiva contra o menino plebeu que “ousou” ocupar um espaço antes reservado estritamente aos filhos da nobreza não é diferente da raiva classista das pessoas reprovando em suas redes sociais a entrada de cotistas negros em universidades cujas paisagens antes eram majoritariamente brancas. Já a raiva alimentada pela ignorância a respeito de Nimona, figura que diz se metamorfosear em busca de liberdade, é análoga às manifestações transfóbicas dos homens e mulheres educados a combater e eliminar divergências do padrão – molde imposto pelos detentores do poder que define a “normalidade” assimilada pela maioria. Ágil e superdivertido, o filme indicado ao Oscar é também afirmativo.

Nimona fala sobre a luta de marginalizados incumbidos de corrigir o curso da história. Ballister precisa compreender que o sonho de ser cavaleiro é parte do problema. Sua tomada de consciência é limitada como mecanismo para reformar a cultura dessa localidade porque nela a revolução deve ser alimentada pelo sentimentalismo da empatia e do amor. Contaminado pela educação cujo princípio é a divisão social em castas, até para os insurgentes enfrentarem dificuldades “naturais” quando almejam postos sociais proeminentes, Ballister aprende com a peralta Nimona que é árduo esse processo de desconstruir um pensamento. Nick Bruno e Troy Quane oferecem um espetáculo visual vibrante, apostando especialmente na capacidade de Nimona de se metamorfosear em animais, adultos e crianças ora fofas, ora endemoniadas. Desse modo, a natureza lúdica da aventura serve ao discurso e vice-versa. Não temos um filme doutrinário e moralista que oferece suas ideias catequizando o espectador, mas que aposta na mescla entre ação, drama pessoal e retrato social para fazer algo indicado a todas as idades. Com ele, os pequenos e os grandes podem assimilar ideias sobre respeito à diversidade enquanto se divertem com as estrepolias de um cavaleiro que extrai da sua derrocada a possibilidade de uma reinvenção pessoal. Sem a conspiração, ele seria condenado a repetir o discurso dos poderosos.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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