Crítica

Ao contrário do que foi visto nos seus longas anteriores, o cineasta argentino Daniel Burman resolveu quebrar algumas de suas próprias regras ao realizar seu novo trabalho, Ninho Vazio. E, com isso, conseguiu entregar um filme ainda superior ao que vinha realizando até então. Não que suas primeiras aventuras por trás das câmeras fossem frustrantes – muito pelo contrário, obras como Esperando o Messias (2000), O Abraço Partido (2004) e As Leis da Família (2006) estão entre as melhores feitas no nosso país vizinho na última década. Mas o sentimentalismo um pouco exagerado e um cenário por demais familiar ficou de lado, e agora ele parece estar no total domínio do exercício cinematográfico, fazendo bom uso dos elementos que se encontram ao seu dispor. Com isso consegue levar ao público um texto refinado, uma trama mais perspicaz e um enredo que seduz pela inteligência e simplicidade.

Apesar de contar com a talentosíssima Cecília Roth (Tudo Sobre a Minha Mãe) e com o versátil Jean Pierre Noher (que foi visto há pouco na novela A Favorita e, além de ter sido premiado em Gramado por Um Amor de Borges, marcou presença em produções brasileiras como Diários de Motocicleta, Redentor, Diário de um Novo Mundo e Estômago) no elenco, o verdadeiro protagonista de Ninho Vazio é vivido pelo ator Oscar Martínez, muito conhecido no seu país natal, porém praticamente desconhecido internacionalmente. Ele aparece como o intelectual e pai de família Leonardo, casado com Martha (Roth) e pai de três filhos. O roteiro trata justamente da ausência destes: a mais velha foi morar em Israel com o noivo, enquanto que os dois menores foram estudar na Europa. A esposa tenta retomar sua vida voltando à faculdade e se reencontrando com antigos colegas e amigos. O patriarca, no entanto, se vê sozinho e abandonado, sem saber como preencher todo aquele tempo livre.

O que parece ser um período angustiante e solitário acaba se mostrando bastante proveitoso. E se ele pudesse deixar de lado as obrigações profissionais para apenas aproveitar os pequenos prazeres, como passar horas brincando com um aeromodelo? Ou retomar cuidados com o corpo, como arrumar os dentes? Ou, ainda, investir num flerte ocasional? Até mesmo amizades inesperadas parecem ser uma opção menos do que estranhas neste novo cotidiano ao qual ainda está em processo de adaptação. Porém toda esta nova vida pode ser uma ilusão – e no sentido mais literal da palavra. E esta brincadeira com a fantasia, a criação, a ficção e o peso da realidade é que fornece o grande diferencial do filme. Burman – que escreveu o argumento a partir de uma ideia do amigo, ator e até então parceiro Daniel Hendler (protagonista de todos os seus longas anteriores) – brinca com um jogo de possibilidades, oferecendo pistas durante todo o desenvolver da história do que realmente está revelando. Só não vê quem não quer.

Ninho Vazio tem, a seu favor, um belo roteiro, construído minuciosamente e, justamente por isso, tão preciso nos detalhes e reviravoltas. Mas não é só isso – bons atores, um diretor dedicado e um cuidado todo especial no seu formato fazem deste um filme que merece ser descoberto. Ele não cativa de primeira, e por alguns momentos parece até carecer de maior calor ou envolvimento. Mas, assim como os verdadeiros tesouros, lentamente irá revelando seu real valor, confirmando de vez porque a Argentina é um celeiro de boas histórias e dona de um cinema sábio, pertinente e, acima de tudo, humilde.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.

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