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Sem Chão
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Yuval Abraham, Basel Adra, Hamdan Ballal, Rachel Szor
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No Other Land
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2024
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Palestina / Noruega
Crítica
Leitores
Sinopse
Em No Other Land, Basel Adra é um jovem ativista palestino de Masafer Yatta que luta desde a infância contra a expulsão em massa da sua comunidade pela ocupação israelense. Basel documenta o apagamento gradual do local, ao mesmo tempo em que os soldados destroem casas de famílias, no maior ato de transferência forçada já realizado na Cisjordânia ocupada. Premiado no Festival de Berlim 2024.
Crítica
Desde a Segunda Guerra Mundial, parece que o grande medo de todos é a ocorrência de um terceiro conflito global. No entanto, isso não significa que o mundo está em paz. Há batalhas de enormes proporções sendo travadas atualmente em locais geopoliticamente estratégicos, mas que comovem apenas enquanto pautam noticiários diários. Não é porque deixamos de debater tanto a atual briga entre Rússia e Ucrânia que ela desapareceu. A guerra somente virou “notícia velha”. Portanto, o que determina a visibilidade é o fator novidade. O mesmo pode ser dito do genocídio palestino em curso por dirigentes de Israel, isso depois de décadas de opressão aos árabes privados de elementares condições de sobrevivência. O Oscar, a mais importante festa de Hollywood, parece sempre atenta a documentários a respeito desses conflitos. No ano passado, por exemplo, tivemos concorrendo o polêmico 20 Dias em Mariupol (2023), exemplo de como lidam de modo sensacionalista o desespero resultante de uma guerra. Neste ano, está na disputa Sem Chão, filme muito diferente do ucraniano em abordagem, perspectiva e sensibilidade. Primeiro, porque não vê a guerra principalmente como uma fonte de imagens chocantes. Segundo, pela direção assinada por sujeitos que vivem aquilo na pele. Terceiro, pela maneira cuidadosa de tratar dramas pessoais inseridos dentro de um contexto político enorme.
Sem Chão tem como protagonista (e um de seus diretores) o jovem ativista Basel Adra, nascido em Masafer Yatta, território que abrange 19 aldeias palestinas no sul da Cisjordânia. Filho de pais que lutam há anos contra a opressão do Estado de Israel, ele utiliza as ferramentas do jornalismo para denunciar os intermináveis avanços do exército israelense para expulsar moradores da localidade. Cada vez que um soldado inimigo afirma estar agindo conforme a lei, as imagens nos mostram desumanidades – como obrigar as pessoas a escapar de suas casas enquanto elas são demolidas impiedosamente com máquinas pesadas. Nesses momentos, repetidos em vários pontos do documentário, ficam implícitas algumas perguntas: a legalidade construída em torno de uma ideologia, de um plano de dominação, sem qualquer tipo de isonomia, não é a primeira instância do imperialismo cruel? Essas leis devem ser obedecidas cegamente, ainda que provoquem dor e morte? Os diretores Basel Adra, Rachel Szor, Hamdan Ballal e Yuval Abraham poderiam elaborar um pouco melhor esses questionamentos éticos inerentes aos acontecimentos, mas preferem deixar as questões num nível subliminar, pois sua prioridade é a denúncia de uma atividade criminosa. O Estado de Israel reivindica a localidade como área de treinamento militar. Desabrigar famílias para fazer circular por ali tanques e armas.
É evidente que Sem Chão defende com unhas e dentes um lado da disputa entre israelenses e palestinos. Basel Adra cresceu com medo de o pai ser novamente preso por defender direitos básicos, é constantemente acordado no meio da madrugada com a chegada de soldados e operários encarregados de transformar casas em escombros. Basel sofre na pele pela falta de humanidade de homens e mulheres israelenses agressivos e armados até os dentes que deixam subentendida a facilidade com a qual podem puxar os gatilhos das armas. Outro personagem e diretor do filme é Yuval Abraham, jovem jornalista israelense que testemunha indignado a ação dos compatriotas. Mesmo que timidamente, ele oferece um contraponto interessante à atitude do seu Estado, demonstrando empatia com os palestinos e tentando ajudar da melhor maneira possível. Por conta do já mencionado privilégio à denúncia, à construção de um discurso talvez capaz de tornar mais público o combate incansável dos moradores de Masafer Yatta, os quatro diretores deixam de desenvolver esses eixos temáticos que aparecem ao longo do filme. Desse modo, não aproveitam potenciais como a hereditariedade da luta; o angustiante testemunho infantil da ação do Estado de Israel; a singularidade de Basel e como ela é reduzida a “resistir”; a sistematização da destruição palestina, não apenas algo material, mas emocional e psicológica.
Diferentemente do sensacionalista 20 Dias em Mariupol, que ultrapassa vários limites ao mostrar cadáveres e outras atrocidades (mais explorando os horrores da guerra do que necessariamente os denunciando), Sem Chão tem uma abordagem mais sóbria e ética. Basel Adra, Rachel Szor, Hamdan Ballal e Yuval Abraham permanecem focados na denúncia de uma destruição lenta e gradual, bem como no desamparo dos moradores das 19 vilas de Masafer Yatta, muitas vezes obrigados a resumir suas vidas a amontoados de pertences tratados como entulho num terreno ainda mais empoeirado pela transformação de paredes e tetos em escombros. Cada imagem registrada com urgência, no calor do momento, tem por finalidade atribuir responsabilidade ao Estado de Israel pelo sofrimento dos palestinos novamente desterrados. Do ponto de vista da linguagem, um ponto negativo é a repetição de situações semelhantes. Embora essa reiteração tenha um porquê (mostrar justamente que a ação criminosa é contínua e recorrente), cinematograficamente falando ela causa certa anestesia. A primeira imagem de uma casa sendo demolida sob os protestos desesperados de seus moradores é angustiante, a vigésima nem tanto assim. Além disso, há nuances que poderiam ser mais bem trabalhadas nesse documentário israelo-palestino a respeito de uma brutal ocupação militar. Feitas as ressalvas, é preciso também ressaltar a coragem dos jovens realizadores que fazem do cinema uma ferramenta de resistência.
Filme visto durante a 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2024
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