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Sinopse

Quatro amigos em situações muito diferentes durante um baile. Mari focada em participar das finais de um concurso de rima; Japa vende produtos de seu" chefe"; Gui preocupado com a bilheteria; Café apenas quer se divertir. Todavia, os acontecimentos da noite mudam seus destinos permanentemente.

Crítica

Já se passaram dez anos desde que Cinco Vezes Favela (1962) foi refeito pelo cinema brasileiro contemporâneo, com a intenção de dar a voz aos moradores das comunidades. O projeto foi desenvolvido durante anos sob o título 5x Favela: Agora por Eles Mesmos (2010), antes de alguém perceber o ato falho do título que apenas sublinhava o olhar externo a estas pessoas. Foi rebatizado, enfim, como “Agora por nós mesmos”. Filmes em que se entrega a câmera a grupos indígenas, para que registrem seu cotidiano sem a interferência alheia, sofrem de problemas semelhantes, uma vez que os aparelhos são trazidos de fora e o aprendizado provém do homem branco, que costuma cuidar da montagem e finalização. Por mais que os filmes possuam boas intenções, ainda é difícil “dar voz” a grupos marginalizados sem acesso ao cinema, seja ele enquanto forma de produção ou consumo de filmes. Como empoderar grupos desfavorecidos sem recorrer ao paternalismo, nem à estética ou discurso do colonizador?

Nóis por Nóis (2020) abraça um desafio semelhante, não apenas pelo título, mas pela iniciativa de convidar jovens dos movimentos artísticos da periferia de Curitiba para retratarem a si mesmos. Aly Muritiba, diretor que possui experiência com atores não profissionais, e o educador Jandir Santin partem da experiência pedagógica para a produção profissional. Dessa vez, ao invés de cineastas de classe média retratarem moradores das periferias, são os próprios moradores da periferia que oferecem o olhar sobre si mesmos aos espectadores de classe média – público que possui condições financeiras de frequentar o circuito comercial. A intenção consiste em retratar a criminalidade sem o fetiche do blockbuster (ou seja, o perigo não é “empolgante” para a nossa diversão), tampouco revestido pelo moralismo das produções religiosas (ninguém é julgado negativamente pelas ilegalidades, devidamente inseridas em contextos sociais adversos). Enquanto desconstrução do imaginário coletivo da marginalidade, o projeto obtém sucesso.

Os diretores tomam a precaução de fazer das limitações uma opção estética. O filme possui orçamento baixíssimo, o que se traduz na câmera na mão de aparência caseira, além da iluminação e da captação de som “naturais”, com poucos aparatos externos. Esta configuração não se confunde com precariedade de linguagem: existe evidente controle da estética cinematográfica, ainda que limitada pelos recursos à disposição. Os cineastas fazem o possível para contornar as dificuldades através da estética da urgência - afinal, o drama não tarda a se transformar num filme policial com aspecto de suspense. Neste momento, a montagem faz o possível para imprimir tensão e colocar o espectador ao lado de seus protagonistas. Há bom ritmo no filme, o que não se traduz, felizmente, na busca pelo espetáculo da delinquência. A aparência de naturalidade se choca, no entanto, com limitações evidentes, em especial no que diz respeito à direção de fotografia. As imagens são escuras demais, mesmo durante o dia, nas cenas dentro de quartos e casas. A ausência de iluminação externa faz com que os detalhes e a riqueza dos cenários se percam – algo especialmente grave no caso de protagonistas negros, cuja pele precisaria de uma atenção especial da fotografia.

Em paralelo, o roteiro é marcado por facilidades ou inverossimilhanças: um telefone celular com imagens comprometedoras é abandonado na rua pelos principais interessados, e depois retomado, escondido e reaproveitado com uma facilidade ímpar. A televisão se liga apenas para dizer aquilo que os personagens – e o público, por extensão – precisam saber; e o comportamento de alguns protagonistas diante de um grave crime soa absurdo (quando descobre a responsabilidade de um homem perigoso no caso, por que Gui iria avisá-lo?). Frases heroicas como “Se matar o cara, vai ter que me matar também” ou “Vou fazer isso pelo meu filho” soam estranhas vindas de uma figura particularmente covarde. Nóis por Nóis cresce nas interações de aparência espontânea, incluindo as conversas na rua entre Café (Matheus Correa) e Mari (Ma Ry) e a batalha de rap durante uma festa. Ele se enfraquece à medida que as cenas se tornam mais roteirizadas, quando a inexperiência dos atores pesa, sobretudo diante de atores profissionais ótimos como Luiz Bertazzo, que rouba a cena sempre que aparece. Personagens importantes são abandonados sem uma conclusão satisfatória (caso de Shat e Jana), e mesmo a ousada eliminação de um dos protagonistas ocorre de modo anticlimático, sem que os personagens e o espectador tenham direito ao luto – a montagem simplesmente salta ao período pós-choque.

Enquanto valoriza a união contra os abusos policiais – numa conclusão ousada, porém abrupta em termos de roteiro e montagem – o filme valoriza o cinema enquanto ferramenta política e democrática. O telefone celular é elevado ao status da arma, como afirma um personagem, capaz de destruir inimigos sem a necessidade literal de eliminá-los. Talvez essa forma de idealização soe romântica demais: por que Maria e Gui investigariam o crime abertamente pelas ruas, sem se protegerem, e como Japa não imaginou que suas ações pudessem ter problemas? No entanto, “o garoto que filma”, aquele reconhecido na comunidade pelo valor de suas imagens, torna-se o verdadeiro herói, cujos registros continuam a pautar a narrativa após sua ausência. A conclusão, marcada por imagens reais de protestos, recai na ambiguidade típica do cinema político que pretende reconhecer o valor das manifestações ao mesmo tempo em que duvida da potência de suas próprias imagens. A necessidade de introduzir o “real” traduz pouca confiança no alcance da representação fictícia. Entre assertividade e idealização, entre a política do conflito armado e a política das imagens, Nóis por Nóis desenha um enfrentamento conceitualmente hesitante.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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