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Sinopse

Ellie é uma jovem aspirante a estilista que se muda para Londres na intenção de perseguir seu sonho. No local, ela descobre uma estranha conexão com Sandie, dançarina e cantora que viveu na década de 1960 e foi alvo de abusos sexuais e psicológicos. Enquanto testemunha os acontecimentos do passado, Ellie tenta evitar que sua antecessora tenha um destino trágico.

Crítica

O primeiro prazer diante desta produção se encontra no fato de constituir uma história original. Noite Passada em Soho (2021) não faz parte de uma franquia, não adapta um best-seller, nem representa uma sequência, um produto derivado, um prequel ou reboot de marca famosa. Não é inspirado em parque de diversões, quadrinhos, videogame ou jogo de celular. Obras do tipo se tornaram cada vez mais raras graças à industrialização crescente dos blockbusters, sendo consideradas inviáveis no período de retomada das salas de cinema, quando os produtores procuram uma garantia de rentabilidade a curto prazo. Em meio à inevitável polarização entre gigantescas aventuras familiares e pequenas obras ousadas, circulando por festivais e nas salas “de arte”, a chegada de uma grande obra de estúdio, com orçamento considerável e, mesmo assim, partindo de uma premissa inédita, representa uma conquista a destacar. No ano de 2021, por exemplo, apenas duas das 30 maiores bilheterias norte-americanas oferecem uma proposta original até a data de redação deste texto. O risco se transformou em raridade.

Em segundo lugar, a obra visa um tipo específico de horror, onde os adversários fogem ao estereótipo dos fantasmas em casarões assombrados, meninas virginais possuídas pelo demônio ou psicopatas sanguinários nos slashers. Neste caso, o pavor nasce da ameaça constante de abuso sexual e psicológico contra mulheres. Quando Ellie (Thomasin McKenzie) se muda para Londres e descobre as sedutoras atrações das casas noturnas, logo se identifica com uma figura de décadas atrás - uma jovem de idade semelhante à sua, que acredita ter ocupado o quarto onde vive. O perigo para Sandie (Anya Taylor-Joy), nos anos 1960, encontra-se no possível estupro praticado por homens poderosos em troca de vantagens profissionais. O roteiro imagina o terror da era #MeToo, derivado de figuras humanas e realistas ao invés de monstros considerados como tais. Matt Smith, na fase antiga, e Terence Stamp, na versão contemporânea, ilustram estas ameaças. “Todas as meninas fazem isso, por que você seria especial?”, dispara o "agente", diante da recusa da aspirante a cantora e dançarina. O medo decorre da conversão dos objetivos pessoais em motor de chantagem - até que ponto se tolera abrir mão de princípios em nome da realização de um sonho?

Noite Passada em Soho elabora uma equivalência interessante entre as duas protagonistas, que convivem durante os delírios da madrugada, apesar de jamais se encontrarem de fato. Sandie constitui a metade impulsiva faltando à recatada Ellie que, por sua vez, passa a proteger a cantora em caso de gestos impulsivos. O roteiro imagina uma rede silenciosa de sororidade atravessando gerações, quando a policial se transforma na única a acreditar nas acusações fantasistas da estudante de moda; a dona da pensão a protege contra um possível homem abusador, e o fantasma da mãe falecida funciona como ferramenta de encorajamento, ao invés de angústia. A exemplo de Vozes e Vultos (2021), o projeto concebe a possibilidade de fantasmas benéficas e femininas tentando alertar outras mulheres a respeito da perversidade do sistema. Neste sentido, o texto toma a precaução de defender as heroínas que revidam contra seus agressores, julgando diferentemente a violência do opressor e aquela do oprimido. Embora ameace converter algumas figuras masculinas em mártires na reta final, toma a precaução de relativizar este discurso a tempo de propor nuances nas figuras pressupostas de vítima e algoz. As posições se borram e complexificam rumo ao final.

É uma pena que, em nome da relevante discussão sobre o feminismo no terror contemporâneo, Edgar Wright disponha de recursos tão fracos dentro da linguagem de gênero. O realizador demonstra familiaridade limitada com os códigos do slasher, do giallo e dos rape and revenge films para desenvolver a contento suas imagens e interações. Assim, os “monstros” masculinos de rosto borrado serão os mesmos do início ao fim, sem evoluir em construção e papel narrativo. Confrontada às figuras apavorantes em múltiplas ocasiões, Ellie apenas corre desesperadamente de um canto ao outro, tornando-se a garota louca e histérica da faculdade, a quem o pseudo-namorado invariavelmente gentil e disponível (Michael Ajao) tenta ajudar. Trata-se de uma combinação nociva de gaslighting com mansplaining, algo contraprodutivo para uma proposta feminina e feminista. Nota-se o teor fatalista na condução destes elementos: a jovem estilista será uma vítima perturbada, de voz frágil, da primeira à última cena; Sandie jamais encontra alternativas à opressão masculina fora da vingança espetacular, e uma mulher traumatizada no passado precisa ser entregue à morte para expiar a culpa. A tentativa de honrar estas figuras através do sofrimento transmite uma visão antiquada de empoderamento, como se as únicas escapatórias para as mulheres agredidas fossem correr, se render ao abuso ou enlouquecer. Em chave fetichista, os homens serão bondosos ou perversos, sem meios-termos. Para chegar a seus fins, o diretor simplifica perigosamente sua fábula.

Além disso, o roteiro constrói uma versão inverossímil dos relacionamentos ao redor da heroína. A estudante passa vários dias na faculdade de moda construindo um único vestido; o gentil John existirá apenas para Ellie, sem vontades nem características próprias; o trabalho no bar é isento de tarefas concretas; a rival na escola se reduz à caricatura da “menina malvada”; o conforto financeiro soa improvável (a compra do casaco caro). Wright continua insistindo na overdose indigesta de músicas: embora as canções sejam agradáveis e pertinentes ao período retratado, elas se sucedem sem respiro, como se o autor tivesse fobia do silêncio. Ele sabe trabalhar sensações dentro de uma atmosfera cool, no entanto, o filme propõe esta diversão em detrimento da psicologia e da verossimilhança de uma Londres contemporânea que nunca sabe ao certo se pretende ser levada a sério, em prisma ultra moderno (a menção à Kylie Jenner), ou num mundo de realismo fantástico. O melhor terror precisa vir dos personagens, ao invés de ser imposto a eles de maneira externa. A própria decisão de tornar as mortes sedutoras e plasticamente atraentes desperta questionamentos éticos. O cineasta mergulha num terreno que não domina, ainda que munido de boas intenções - algo que, em tempo de tomada limitada de riscos, representa uma iniciativa a comemorar.

Filme visto na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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