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Sinopse

A rotina de Ada e Otto numa bucólica cidade interiorana, onde todos se conhecem, ganha toques de mistério com o sumiço repentino do carteiro. Otto passa as noites espiando pela janela, tentando vencer a insônia com o chá de alface preparado por Ada.

Crítica

Quando decidiu filmar O Iluminado (1980), baseado no romance homônimo de Stephen King, o mestre Stanley Kubrick feriu os brios do escritor (que já declarou publicamente, em mais de uma ocasião, desprezar essa versão, tendo preferido o telefilme feito por Mick Garris em 1997) ao afirmar que “muito mais fácil é fazer um bom filme a partir de um péssimo livro do que realizar um grande longa quando a obra literária já se aproxima da excelência”. No caso de Noites de Alface, adaptação cinematográfica comandada por Zeca Ferreira a partir do romance de Vanessa Barbara, os nomes envolvidos não estão na mesma dimensão de um King ou de um Kubrick, mas a lição acima citada poderia ter sido empregada sem prejuízo – aliás, pelo contrário. Afinal, o que o realizador de 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968) quis dizer é que a fonte literária é não mais do que isso: uma inspiração, que, a princípio, não deve ser levada ao pé da letra. E independente do quão fiel Ferreira foi em relação ao texto de Barbara, o certo é que em cena há soluções que podem se mostrar válidas diante da fantasia proporcionada pela imaginação, mas soam truncadas diante da concretização de uma eventual realidade.

Otto e Ada são casados há anos. Os nomes, como se percebe de imediato, são palíndromos. Ou seja, do início para o fim, ou do término até o começo, suas grafias são as mesmas. E este filme se constrói da mesma forma. A primeira cena é também a última. Isso não significa, no entanto, que seja desprovido de um antes, um durante e, principalmente, um depois. Pois se Otto e Ada estão juntos agora, logo não estarão mais. A partida dela o deixou sozinho. Para um casal de terceira idade, essa parece ser uma realidade normal, até mesmo esperada. Mas, por mais que seja esperada, como lidar com a mesma quando se faz presente? Essa parece ser a maior preocupação dele, aquele que ficou para trás. Antes, no entanto, quando estavam juntos, já havia uma impressão não muito nítida, mas ainda assim constante, de uma falta de sintonia entre eles. Ele se mantinha ausente da maior parte da rotina da casa, ignorando visitas, se eximindo de obrigações sociais. A vivacidade, portanto, estava com ela. E quando essa sai de cena, leva consigo também o viver de ambos.

Suas histórias ganham novo viés a partir da relação com o título. Otto sofre de insônia, e passa as noites em claro. Ada resolve essa questão a partir de uma receita caseira, que alega ter sido herdada da mãe: chá de alface. Uma beberagem que a ele é levada acompanhada por um alerta: a resolução de seu problema não será fácil, distante de um mero estalar de dedos. Tanto é que deverá ser seguida por um novo costume, uma repetição e frequência, que o induza de volta ao sono. A impressão é que se trata de algo simples, um pormenor que se dá apenas entre casais de longa data. Um recurso caseiro, portanto. Mas há algo mais envolto nessa questão. E é justamente nessa mudança de tom, do drama familiar para o thriller policial, que Noites de Alface dá seu maior tropeço. Pois a transição de um para o outro não se dá sem ruído. Um distúrbio que, por não ocorrer com sensibilidade, chama atenção em demasia ao que deveria se manifestar de forma discreta, quase despercebida.

Quando estão sozinhos em cena, a sintonia existente entre Otto e Ada se dá sem interrupções, muito devido ao controle e à tranquilidade de se ter uma dupla de excelentes atores em cena. Everaldo Pontes e Marieta Severo são de escolas diferentes: ainda que ambos compartilhem de uma formação teatral, ele, nordestino, se aproximou do audiovisual primeiro em experiências regionais com a tela grande, em curtas e longas independentes e autorais, enquanto que ela, carioca e uma das maiores estrelas globais do país, por maior que seja a sua trajetória no cinema, está diretamente ligada à novelização e ao mainstream da narrativa nacional. Mesmo assim, eles simplesmente funcionam, como se esse histórico distinto estivesse ali colaborando na união de ambos, ao invés de afastá-los. Ele é o ranzinza, cheio de manias, incisivo em seus quereres e fazeres, ao mesmo tempo em que se mantém alheio ao que se passa até mesmo dentro da própria casa. Ela, por sua vez, é a atenção nos detalhes, o cuidado que resvala pelo canto dos olhos, a sensibilidade preocupada com o antes e o com o depois, ainda que objetiva sempre que a situação exige. É por eles, mais juntos do que separados, que o filme justifica cada olhar que atrai para si.

Infelizmente, Noites de Alface não se resume apenas ao encontro de dois intérpretes no domínio de suas habilidades. O diretor, aqui também roteirista, insiste em inserir mais personagens, muitos não trabalhados a contento – artistas de distintas gerações, como João Pedro Zappa e Teuda Bara, conhecidos pelo talento que lhes acompanha, deixam evidentes seus esforços, e mesmo assim resultam mais como distrações do que imprescindíveis ao conjunto. A inserção de carteiros, policiais e receitas de couve-flor à milanesa, que talvez devessem ter permanecido no âmbito do corriqueiro, tão propício aos altos e baixos de uma relação que se leva décadas adiante, por vezes ambicionam roubar o protagonismo da trama, gerando uma interferência que mais atrapalha do que colabora com o todo. É um pesar que se verifica, pois este é o típico caso em que o menos poderia ter resultado em muito mais.

 

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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