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Crítica

Uma trupe circense está em viagem. Num flashback com estética de cinema mudo, vemos a desmoralização sofrida pelo palhaço Frost (Anders Ek) um ano antes, quando sua esposa decidiu banhar-se nua com alguns militares. Ao invés de defender a própria vaidade, lutando contra os risos aproveitadores de seu infortúnio, ele esconde a nudez da mulher (agora envergonhada) para preservá-la da chacota. Demonstração de amor verdadeiro, quem sabe. Voltamos ao tempo presente do filme, no qual a dificuldade extrema é carona indesejada dos artistas que vão de lugar em lugar vendendo o lúdico em shows populares. Os personagens de Noites de Circo (1953), provavelmente a mais expressionista das realizações de Ingmar Bergman, lutam bravamente contra a miséria, ainda que apresentem sinais claros de derrotismo.

O dono do circo, Albert (Åke Grönberg), está cansado dessa rotina mambembe, das pulgas que infestam sua carroça, do pouco dinheiro, enfim, da inconstância de vagar sem um porto seguro. Seu rosto carrega inquietação, sobretudo em virtude de uma contradição, já que ele nunca se adequou ao cotidiano sedentário, mas agora o deseja por necessidade. Parece, assim, condenado à eterna insatisfação. O relacionamento que mantém com Anne (Harriet Andersson) é conturbado, talvez porque ela também esteja farta de ser uma mulher de estrada, de não poder usar roupas alinhadas e ter os privilégios de uma dama da sociedade. O amor não basta mais, ainda que ela faça força para mantê-lo vivo. Quem sabe, a possibilidade de perder Albert a amedronte tanto porque com ela reencontre o abandono.

Bergman conduz Noites de Circo entrecruzando material e imaterial, não os relacionando de maneira arbitrária ou ordinária, mas fazendo-os dialogar plano após plano. A imagem – com forte contraste entre luz e sombra, noutro excelente trabalho do diretor de fotografia Sven Nykvist – dá conta de emoldurar a desesperança que afeta a todos, em consonância com a construção de cenários intangíveis (a geografia interna dos personagens) repletos de angústias e frustrações. A humilhação, outra constante no filme, elemento que evidencia a ânsia de mostrar superioridade ao próximo, reaparece quando o casal vai pedir à companhia local de teatro alguns trajes essenciais à apresentação noturna. Os artistas do palco diminuem os do picadeiro, fazendo pouco do artifício circense, para logo depois, “generosamente” ceder os adereços pretendidos. Tudo tem um preço, e, sabendo disso, eles penhoram suas dignidades para o circo sobreviver. Outra prova de amor verdadeiro?

Antes de o espetáculo ir à cena, Albert e Anne enfrentam situações que parecem tão inevitáveis quanto definidoras. Ele entenderá, por meio da rejeição, que não se pode voltar ao passado como se a dor de antes não existisse mais. Ela, por sua vez, se entregará a uma promessa frágil de futuro, em ação que ocasionará outra humilhação pública. São atitudes que refletem o grau do desespero de ambos, cuja urgência tem mais a ver com o limite da penúria existencial que com a banalidade da pressa. É apenas enfrentando a própria condição, impondo-se, que eles encontrarão um pouco de paz, depois de tantos tormentos. O sacrifício não purifica, mas é misericordioso nesse mundo em que Deus inexiste ou prefere o silêncio. O deslocamento é uma sina, bem como a permanência, ou seja, nenhum caminho é pleno como bem querem a princípio os personagens de Noites de Circo, este que é um dos grandes filmes de Ingmar Bergman.

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