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Sinopse

Nona vive num povoado costeiro cercado por uma floresta misteriosamente incendiada. O fogo é atribuído ao Diabo. Diante do aumento enorme das labaredas, Nona exibirá os diferentes lados de sua personalidade excêntrica.

Crítica

A cineasta chilena Camila José Donoso não parece preocupada em limitar-se entre documental e ficcional. Tampouco se dispõe a barganhar com a concepção estrita de verdade em Nona: Se Me Molham, Eu Os Queimo. Muito pelo contrário, pois demonstra apreço pelo embaralhamento, por borrar ao máximo essas fronteiras tão obscuras e difíceis de determinar. A protagonista é Nona (Josefina Ramírez, a avó da diretora), mulher que precisa se exilar numa pequena cidade após consumar um crime motivado por questões ainda desconhecidas. Após a conversa coloquial com a filha, na qual menciona pertences a serem levados e onde ficariam os remanescentes, surge outro tipo de imagem, com textura e razão de aspecto próprios aos suportes com menos largura e definição. Nesse momento, superficialmente, é evocado o passado, numa sequência que se alonga para além do necessário a fim de sinalizar os efeitos da ruptura. Camila explora a deterioração, os riscos na película, momentaneamente deixando-se guiar totalmente pelo ímpeto experimental, sinalizando assim uma radicalização. Mais importante que a trama são as várias misturas e o fluxo que disso decorre.

Dali em diante, Nona: Se Me Molham, Eu Os Queimo se transforma num corajoso experimento que também rapidamente nega as facilidades aos que buscam os limites entre a Nona ficcional e a inventada. Isso porque, em princípio, pode-se pensar que a imagem retangular e cristalina, característica dos equipamentos de filmagem atuais, representa a parcela fabulada, a história imaginada a partir das vivências da protagonista factualmente como militante anti-Pinochet. Porém, em vários instantes é semeada a dúvida a respeito da facilidade dessa leitura, vide inserções como o vislumbre dos trabalhadores que constroem a casa revestida de alumínio. Camila pega esse registro, supostamente verídico, e o investe de um sentido híbrido por meio da inserção do diálogo extracampo. Desse modo, aos arrebatados especificamente pela averiguação gradativamente complicada, o filme ganha uma aparência labiríntica bastante interessante. Todavia, há um excesso na mistura heterogênea, o que potencialmente afugentará os motivados por valores mais tradicionais, tais como as interpretações e mesmo a noção clássica de enredo. Estes tenderão a experimentar dificuldades.

Em várias passagens, Nona: Se Me Molham, Eu Os Queimo é um documentário clássico, daqueles em que existe uma relação de afeto entre a operadora da câmera e a pessoa por ela observada. Nona se refere à Camila com ternura, menciona suas demandas de compra, vai ao posto de saúde consultar-se por conta de um problema ocular e, adiante, menciona o passado de luta política – elemento apenas importante como indício, pois transformado num dado subentendido. Já sua “outra” versão protagoniza ocasiões carregadas, inclusive, de certa poesia, como quando caminha em câmera lenta com um Coquetel molotov inflamando antes dele espatifar-se contra uma superfície então tomada por labaredas. Na região, vários incêndios são deflagrados, menos na casa dessa senhora que, assim, se oferece ao espectador como óbvia suspeita. Porém, Camila não lapida o suspense, sequer permite que cheguemos próximo à sua avó ao ponto de a conhecermos melhor. O filme vale o quanto reverbera esse jogo intenso de aproximação e distanciamento entre e invenção e realidade, num movimento evidentemente empenhado em mostrar, em sentido estrito, a inexistência de uma divisa.

Camila José Donoso reduz a história à mera coadjuvância diante do protagonismo da investigação para lá de instigante, mas praticamente apartada daquilo que poderia lhe servir de valioso estofo/base. As pílulas sobre o passado militante de Nona não são suficientemente destacadas ao ponto de sustentar a dinâmica instaurada entre as instâncias supostamente antagônicas, mas que vão crescentemente se fundindo. Há um insuspeito caráter circular no roteiro, característica percebida abruptamente no encerramento, em que a presença muda de Eduardo Moscovis nos dá um indício da contenda que levou a mulher a refugiar-se no interior. Especificamente quanto à protagonista, ela se revela melhor quando entrevistada pela neta, destilando uma forma nada ortodoxa de enxergar as coisas, incluindo a si mesma. Nas partes aparentemente encenadas, a senhora se comporta como uma exacerbação da sua versão construída à câmera da neta querida. Essa soma possibilita alguma expansão, mas logo acusa sua insuficiência para fazer da personagem mais que uma figura peculiar que pode ser a piromaníaca responsável pela combustão das casas e florestas vizinhas. Ou não. Pouco importa, na verdade. O que pesa prioritariamente é o escrutínio das demarcações, algo que logo se esgota.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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Grade crítica

CríticoNota
Marcelo Müller
5
Alysson Oliveira
4
MÉDIA
4.5

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