Crítica
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Sinopse
Adelaide e Gabe decidem levar a família para passar um fim de semana na praia e descansar em uma casa de veraneio. Viajam com os filhos e começam a aproveitar o ensolarado local, mas a chegada de um grupo misterioso muda tudo. Ao cair da escuridão, os Wilson terão que enfrentar o mais terrível e improvável adversário: eles mesmos.
Crítica
Fazendo jus à tradição do horror, criando uma alegoria que retrabalha cinematograficamente certas rachaduras sociais, o cineasta Jordan Peele faz de Nós uma vibrante jornada pela obscuridade, não apenas da sociedade norte-americana, mas também dos indivíduos que dela fazem parte. A protagonista é Adelaide (Lupita Nyong'o, excelente, o grande destaque do elenco), atormentada pelo episódio do passado apresentado como uma espécie de prólogo. Na infância, fase em que é interpretada por Madison Curry, ela se desgarrou brevemente dos pais e teve o encontro perturbador com uma cópia sua na sala de espelhos de um parque de diversões. Esse primeiro bloco deixa evidente a existência de algo além da imaginação ou da compreensão imediata. Chama a atenção a artesania da construção minuciosa dessa atmosfera de tensão que se espraia por todo o longa-metragem, com destaque a detalhes significativos, tais como a camiseta de Thriller, canção de Michael Jackson, e a forma como as músicas auxiliam o competente processo de instauração do desconforto.
No bloco intermediário de Nós, Peele utiliza com gosto alguns cânones, especialmente os que dizem respeito aos congêneres nos quais, igualmente, o período idílico de um grupo de pessoas é atravessado pela brutalidade de outrem. Valendo-se de doses pontuais e precisas de humor, que tratam de afinar a modulação dos tons predominantes em cada sequência, o realizador constrói o retrato de uma família tipicamente estadunidense. Esse dado prosaico é revelado pela obsessão de Gabe (Winston Duke) com relação às propriedades materiais do vizinho, o que gera uma sutil competição entre amigos, uma nódoa capitalista. Esse desenho dos arredores e dos tratos passa pelo diálogo da hesitante Adelaide com a Sra. Tyler (Elisabeth Moss), esta suavemente ridicularizada, como mulher branca de classe média, por sua inclinação a mitigar as turbulências do cotidiano com doses de bebida alcoólica e cirurgias plásticas. Esse painel bem urdido confere um estofo dramático suficiente para amparar a brutalidade que irrompe repentinamente com a chegada de um quarteto insólito.
O fato da ameaça ser proveniente de duplos, com os quais há a ligação umbilical explicada adiante, mas não esgotada ao ponto de inviabilizar teses distintas, abre possibilidades, sobretudo de leituras abertamente fomentadas por Jordan Peele. O versículo da Bíblia recorrentemente mencionado – “Portanto assim diz o Senhor: Eis que trarei mal sobre eles, de que não poderão escapar; e clamarão a mim, mas eu não os ouvirei”, Jeremias 11:11 – fornece a porta de entrada a uma compreensão que parte da perspectiva religiosa. Todavia, a dualidade bem/mal é borrada habilmente no decurso da narrativa (embora superficialmente seja convidativo eleger personagens bons e maus), vide a voracidade dos “humanos” no revide dos ataques sofridos, algo que ganha um significado ainda mais profundo quando se tem no horizonte a declaração da outra mãe interpretada por Lupita Nyong'o, a de que os "vilões" são gente de carne e osso. Mas, a interpretação política, que passa abertamente pela questão racial, permanece em voga, nutrindo e substanciando o conjunto.
Também pode se entender o nascimento de uma sociedade subterrânea, em princípio instrumentalizada para um suposto controle da superfície, como alusão a estratégias governamentais, basicamente as ligadas à condução das comunidades por meio do medo. Versões à parte, Nós escancara a sua filiação ao horror ao investir com rara efetividade na delineação de um clima de angústia e medo. Jordan Peele alimenta essa quimera que descamba para o imponderável, organicamente, com um expressivo jogo de luz e sombras em combinação com a trilha sonora. Não menos efetiva, esta vai de Fuck Tha Police, clássico contestatório do N.W.A., às notas de música clássica que ampliam a apreensão. Irônico, mordaz e selvagem, o novo longa-metragem do cineasta que ganhou fama com Corra! (2017) mistura uma considerável compreensão do horror com a observação ferina de uma coletividade doente, aqui representada tanto pelos visitantes indesejados, que exibem vontade de vingança no olhar, quanto pelos humanos, intrinsecamente ligados à violência dos algozes.
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