Crítica
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Crítica
Para a diretora Letícia Simões, “nós" somos todos os seres humanos, todos aqueles que partem em busca de seus sonhos em outros países e que, apesar das diferenças linguísticas e culturais, constituem frutos de uma humanidade em comum. Latinos e europeus; brancos, negros e indígenas são iguais em direitos, e também na essência. O documentário tenta abolir simbolicamente as barreiras políticas e geográficas ao aproximar seis artistas que responderam ao chamado da diretora, em Berlim, buscando por pessoas “que não se identificam com seus lugares de origem”. Assim, encontrou criadores habituados a transitar entre diversos países, abandonando a nação presente quando se sentem confortáveis demais. O cineasta cearense Karim Aïnouz, que vive na Alemanha, narra seu histórico de pertencimento e não-pertencimento. Enver Melis se mostra contrário ao conceito de “casa”, por pressupor algo físico, onde vive uma família junta durante muito tempo, sobrepondo-se aos laços afetivos através de encontros. Eles se comunicam em inglês, francês, espanhol, português e frísio, citando filósofos e discutindo a etimologia em diferentes línguas. O filme escuta intelectuais, promovendo uma reflexão cerebral a partir do princípio da igualdade humana.
É curioso que a noção de nomadismo, mencionada diversas vezes nas conversas, diga respeito quase exclusivamente a pessoas dotadas de certo conforto financeiro, capazes de partir a outras partes do mundo por livre escolha. A diretora se inclui neste grupo, ao explicar ao espectador que já morou em cidades com quase todas as letras do alfabeto. Ora, o estudo dos deslocamentos, fundamental à compreensão do mundo contemporâneo, se desprende de sociedades específicas. Os refugiados em virtude de perseguição étnica, religiosa ou política estão ausentes, assim como exilados em ditaduras, migrantes por motivos de trabalho ou recomposição familiar. Simões se concentra nos movimentos livres, inclusive de amarras econômicas - o sentido de “nós”, evocado pelo título, diz respeito a uma parcela particular da pirâmide social. É excelente que estes artistas possam se deslocar rumo a novas oportunidades, fundamentais à produção de suas obras. No entanto, teria sido importante frisar a condição de privilégio de quem pode fazê-lo por opção, e de que maneira este gesto se relaciona com outros fluxos migratórios. Observa-se uma parcela interessante, porém ínfima, da condição de estrangeiro. Não por acaso, os protagonistas recusam o rótulo de nômades.
Narrativamente, o resultado é desigual: às vezes, os entrevistados oferecem pensamentos fascinantes a partir das ideias de Aílton Krenak ou do processo de criação literária. As falas de Nitcheva Osanna são fortes, numa conversa de aparência fraterna. Em outros momentos, as falas corriqueiras se perdem nos moldes da confissão-diário, quando o personagem menciona seus livros sobre a experiência de ser casado. O escopo se abre demais: após uma provocação relevante relacionada à vivência internacional, tópicos aleatórios assumem o lugar, porque tudo consegue se inserir dentro do recorte excessivamente amplo de “nós" - que sequer se opõe ao termo complementar, e bastante complexo, do “outro”. Cada artista discorre, em última instância, apenas sobre si próprio, o que se estende à diretora, que abre e fecha o filme relembrando as múltiplas cidades onde viveu e as ideias que extrai destes encontros. Busca-se o intimismo através dos diálogos sem direcionamento aparente, que permitem aos entrevistados evocar qualquer tema que lhes pareça conveniente, numa lógica análoga àquela de uma sessão de terapia. O problema se encontra na montagem, encarregada de conectar as digressões numa obra coerente. Ela obtém sucesso quanto ao ritmo, mas soa perdida no que diz respeito ao teor dos discursos.
Esta ambivalência se estende à estética. Como os diálogos dependem muito do conteúdo sonoro, era interessante descobrir quais imagens acompanhariam as falas. Por um lado, o filme segue uma estrutura idêntica para os artistas, conhecidos primeiro pela voz, sobreposta a imagens fugitivas das cidades, e em seguida por seus rostos, revelados numa segunda parte do testemunho. Letreiros anunciam apenas o primeiro nome, em belo trabalho gráfico. Somos levados a imaginar o corpo correspondente às vozes, o que convida o espectador à participação. Por outro lado, as captações metafóricas de cidades despertam efeitos oscilantes, ora com força e beleza, ora assemelhando-se a meras fotografias de estrangeiros extraídas de bancos genéricos de imagens. As tomadas em movimento, coloridas em pós-produção, produzem um efeito poético interessante, exceto pelos instantes em que se tornam redundantes - Karim Aïnouz cita a lembrança de uma Londres de cores quentes, e a cidade se tinge de amarelo e vermelho. De certo modo, o procedimento fílmico não se desenvolve: o mesmo tipo de experimentação encontrado no início se preserva até a conclusão.
Ao final, cabe questionar o que o documentário teria a dizer, enquanto obra autônoma, sobre a vivência fora do país de origem, para além de boas falas pontuais. O encerramento com a performance corporal de Pêdra Costa reforça a impressão de um filme que se encaminha a esmo: esta apresentação seria pertinente dentro de uma obra dedicada ao corpo e à estética queer (caso de Deus Tem AIDS, exibido no Olhar de Cinema), porém soa desconexa com as captações anteriores. Resta uma obra conceitual mais preocupada com as sensações que com a análise social, política e histórica do tema abordado. Nós se traduz numa experiência ampla, dotado de peças valiosas que se enfraquecem em conjunto. Ao menos, percebe-se a vontade notável de mergulhar na psicologia dos personagens e dissociar o documentário da linguagem acadêmica ou explicativa, que seria propícia ao estudo das migrações. Como já havia comprovado em Casa, a cineasta é capaz de criar cenas fortes e imagens de impacto, mas desperta questionamentos éticos a respeito do uso das mesmas quando colocadas lado a lado.
Filme visto no 10º Olhar de Cinema: Festival Internacional de Curitiba, em outubro de 2021.
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