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Sinopse

Num conceituado colégio interno católico, garotas são preparadas para integrar a elite de Ruanda. Perto da formatura, essas estudantes dividem sonhos e preocupações.

Crítica

A princípio, Nossa Senhora do Nilo (2019) introduz seus temas com parcimônia. Embora uma câmera aérea sobrevoe o território de Ruanda, chegando de longe até se aproximar da escola que batiza o filme, não se trata de um estudo sobre o olhar estrangeiro. Ainda que a voz de uma mulher ruandesa mencione a perda da inocência de certos homens na África profunda, demoramos a saber de quem ela fala, em qual contexto. O internato de elite adquire um retrato exterior, com meia dúzia de garotas apresentadas simultaneamente, até que duas duplas se convertam em protagonistas, em turnos alternados (uma curiosa estrutura de roteiro, diga-se de passagem). A presença estranha de um homem branco e francês (Pascal Greggory) entre as meninas sugere perigo para as religiosas. Entretanto, mesmo que venha a desempenhar papel importante em duas cenas, o colonizador não constitui o foco do discurso. Seria mais fácil elencar as questões que terminam por não definir o drama, do que aquelas que de fato o definem. Apenas no terço final o projeto revela suas verdadeiras intenções: oferecer uma fábula lúdica de formação sobre o conflito entre Tutsis e Hutus.

A estratégia se revela tão astuciosa quanto arriscada por parte dos roteiristas Ramata Toulaye-Sy e Atiq Rahimi, este último também diretor. Ao ocultar durante tempo considerável o caráter de “filme de guerra”, ou mais grave ainda, de “filme sobre genocídio”, ele impede que o olhar do espectador esteja condicionado ao imaginário clássico a respeito do belicismo. A rivalidade sangrenta entre grupos étnicos assalta a narrativa de surpresa, assim como teria ocorrido aos cidadãos ruandeses em 1994, 21 anos após a narrativa fictícia. Ao reler a História enquanto ficção, o criador impede que o peso do tema sequestre o projeto e se converta numa denúncia humanitária, ou ainda num panfleto de boas intenções. A irrupção do confronto nunca se sobrepõe à trajetória de Gloriosa (Albina Sydney Kirenga), Modesta (Belinda Rubango Simbi), Virginia (Santa Amanda Mugabekazi) e Veronica (Clariella Bizimana), quatro estudantes cujos caminhos são atravessados pelos rumos da nação. As provocações adolescentes adquirem proporções muito maiores do que as protagonistas teriam imaginado, determinando uma separação traumática entre a violência inventada pelas meninas e a violência real que se abate sobre elas.

Devido à mudança abrupta de tom e temas, o resultado surpreende no que diz respeito à relação de confiança com o espectador. Rahimi mergulha numa trama linear e clássica, com narrações em off, músicas sentimentais e diversos instantes solares de brincadeiras entre as alunas, visando tornar o calvário a seguir ainda mais intenso por comparação. Diversas sequências estereotipadas quanto à imagem da diversão feminina (a briga de travesseiros em câmera lenta, a colega que se gaba do namorado rico) se confrontam com outras, muito mais específicas, a respeito da realidade local (a implicância de Gloriosa com o fato de Nossa Senhora do Nilo, a estátua de uma mulher negra, possuir o nariz fino). Caso não optasse pela guinada final, o resultado seria um filme leve de passagem à fase adulta, onde as jovens ruandesas aprendem seu valor, sua sexualidade e as configurações da sociedade repressora. Não há vida fora da instituição: o cineasta se concentra no internato enquanto microcosmo alheio ao restante do país, surpreso quanto os embates entre Tutsis e Hutus invadem os dormitórios e salas de aula. Os pais das jovens sequer participam da trama. Mesmo sem escolher um protagonista, adota-se o ponto de vista inocente de quem testemunha o genocídio com espanto, de fora, ainda que faça parte do país. Talvez a contradição inerente ao olhar alienado das meninas ricas justifique a introdução tão imersiva quanto distanciada.

Esteticamente, o drama demonstra competente produção de figurinos e locações, além de trabalho uniforme com as atrizes. Em chave oposta, luzes, sons e trilha sonora pendam à idealização. Após conversas verossímeis entre Veronica e Virginia, por exemplo, a montagem insiste numa câmera lenta e na passagem ao preto e branco. Após admirar um belo mural pintado nas paredes, os desenhos adquirem vida e saem caminhando pela casa, em efeito tão lúdico quanto amador. A direção vai um ou dois passos além do natural, para reforçar o perigo e a inocência suficientemente claros pelo roteiro. Os efeitos de íris em cenas de cor saturada, a repetição das câmeras lentas e o efeito em pós-produção semelhante ao HDR (High Dynamic Range) soam mais decorativos do que dramáticos. Rahimi desenha interações eficazes para então sublinhá-las pela estética, caso algum espectador ainda não tenha compreendido suas intenções. Os diálogos reforçam o didatismo, ao incluírem informações de que ambas personagens dispõem, apenas para informar o espectador: “Houve um golpe de Estado. O exército tomou o poder”, explica uma aluna. Não há dúvidas que o discurso se dirige aos estrangeiros, que se supõem ignorantes quanto aos fatos ocorridos no país africano.

Ao final, Nossa Senhora do Nilo provoca sensações mistas. Sua beleza se confunde com ingenuidade, até interromper a doçura com a conclusão de brutalidade excessiva (porém romantizada graças ao excesso de sangue, música e catarse). Ele aposta no registro lúdico da fábula, para abrir mão em seguida dos personagens e conflitos que lhe interessavam. Por um lado, é interessante que o teor religioso – os capítulos são batizados de “Inocência”, “Suplício”, “Sacrifício” etc. – se dilua diante de questões políticas que ultrapassam a moral católica e as intrigas escolares. Por outro lado, debates complexas dentro da trama – o abuso sexual, a gravidez na adolescência, a apropriação de ícones ocidentais – são igualmente soterrados na avalanche da guerra civil. O desfecho se traduz numa experiência violenta demais para o público familiar, enquanto os dois terços anteriores resultam convencionais para o circuito “de arte”. É possível que, por meio das reviravoltas, Rahimi procure seduzir o público interessado numa produção despretensiosa, para então chocá-lo com a gravidade de outro tema. A provocação possui seu valor enquanto cinema e estratégia política, mesmo que o gosto seja um pouco amargo no final.

Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em novembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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