Crítica
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Sinopse
Numa terra dominada sonoramente pela axé music, velhos punks resistem e teimam em viver com autonomia.
Crítica
O movimento punk é frequentemente associado à juventude, à fase na qual a inconformidade vira mecanismo de protesto contra um mundo (especialmente o capitalista) em que o indivíduo vale o quanto produz. Documentário selecionado à Mostra Aurora da 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes, Not Dead tem como objeto de interesse o que restou desse ímpeto em Salvador, na Bahia, terra rica musicalmente, porém comumente associada ao axé music que ganhou popularidade brasil afora e ao samba do qual foi o berço. No entanto, o cineasta Isaac Donato não investe na observação dessa excepcionalidade do movimento punk numa terra em que outros ritmos e estilos de vida são mais corriqueiros. Então, cabe ao espectador ponderar (ou não) sobre esse aspecto, pois o cineasta não elabora os efeitos da continuidade da filosofia anarquista numa cidade notabilizada por outros tipos de manifestações e tribos. O que temos são testemunhos do cotidiano de homens e mulheres que preservam, ao menos um pouco, a atitude punk nas proximidades da terceira idade. Contudo, o elemento mais estranho a essa perambulação um tanto quanto sem eira nem beira é a alternância com um procedimento curioso que escancara algo dos bastidores da produção. Um sujeito cego discute o roteiro com alguém via telefone, no que, saberemos depois, trata-se do desenho da audiodescrição do filme.
Not Dead é um filme de observação, mas sem os princípios do documentário observacional, em que a câmera se intromete (e aparece) o mínimo possível a fim de contemplar os fenômenos sem interferir. Isaac Donato simplesmente mostra de modo consecutivo pessoas que fazem parte do movimento punk desde a juventude e tentam se manter fiéis a esse modo de vida até a atualidade. No entanto, é difícil localizar os pontos que levaram o cineasta a se interessar por esse universo, já que ele não deixa evidente a sua motivação, tampouco faz um retrato de ilusões perdidas e sequer valoriza a resistência dos punks. Basicamente, o documentário registra de modo vago e dispersivo personagens pouco aprofundados, como o sujeito que faz cerveja artesanal ou ainda os integrantes de uma banda disposta a manter acesa a chama do movimento com as músicas que fizeram sucesso nesse universo nos anos 1980. Não há algo que conduza a manifestação desses homens e mulheres, como a nostalgia ou a resignação diante dos tempos atuais. O título dessa produção é emprestado do nome de uma loja de artigos punk que existia em Salvador. Somando isso às esparsas citações dos personagens ao estabelecimento, podemos imaginar que o espaço será utilizado narrativamente como uma espécie de vetor memorialístico. Mas nem isso acontece. As menções à loja são esporádicas e não possuem qualquer relevância.
Porém, um dos elementos mais enigmáticos de Not Dead é a opção aparentemente inexplicável por alternar o retrato desses punks resistentes com o processo de construção da audiodescrição do filme, dispositivo fundamental de acessibilidade para pessoas com deficiência visual. Revezar os flagrantes das conversas pouco cativantes com o trabalho meticuloso de um desses ex-punks como consultor de audiodescrição é uma postura tão curiosa quanto sem resultados dramáticos. Se Isaac Donato demonstrasse interesse na metalinguagem, na incorporação dos processos cinematográficos como um gesto, talvez, associado à indocilidade do punk, isso faria sentido. Mas, a inserção do método é uma atitude que causa estranheza, principalmente porque não agrega ao panorama em construção. Aliás, a única ponte entre o desenho da audiodescrição e o movimento punk é que o professional, repetidas vezes observado discutindo as especificidades de transformar imagens em palavras, fez parte do movimento, o que o legitima ainda mais como consultor não apenas técnico. O realizador até ensaia expandir essa curiosidade a respeito da atividade de audiodescrição, sobretudo ao voltar às imagens do homem subindo uma ladeira de motocicleta e mostrar como esse quadro será transmitido às pessoas com deficiência visual. E isso até poderia despertar interesse adicional se não fosse tão meramente jogado na narrativa.
Além de todos os senões assinalados, Not Dead é incapaz de incorporar algo em sua estrutura que remeta, ainda que vagamente, ao movimento punk reverenciado – se é que existe mesmo esse desejo de reverência, uma vez que o filme parece relutar em dizer a que veio e até em demonstrar o que lhe move. Durante seus cerca de 70 minutos, o longa simplesmente enxerga homens e mulheres falando das utopias do passado e contando o que tiveram de fazer ao longo dos anos para sobreviver, exercitando uma nostalgia que nunca ganha força dramática, muito por conta da falta de consistência desses diálogos que caem rapidamente na banalidade. Piolho é o personagem que, em tese, tem a missão de identificar ex-companheiros de rodas punk, mas sequer ganha terreno para se consolidar como esse andarilho encarregado de colher histórias sintomáticas de uma resistência ao “sistema”. Isaac Donato somente encara as pessoas, dá algum palco para elas falarem abertamente sobre a manutenção da crença no punk como um modo de vida contrário ao que envenena o mundo, mas sem costurar essas falas em torno de um discurso elaborado. A respeito de que o filme fala? O que motivou o diretor ao dedicar esforços para contar histórias dos punks das antigas? Por que Isaac julgou importante inserir os bastidores da audiodescrição? São perguntas que reverberam após a sessão, mas não como boas provocações.
Filme visto na 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2024.
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