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Crítica


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4 votos 7.6

Onde Assistir

Sinopse

Por conta de um mal-entendido, a arquiteta Maud ganha um concurso para reformar o pátio diante da catedral de Notre-Dame. Além da imensa responsabilidade, ela terá de lidar com um turbilhão de sentimentos desencadeados com a chegada de um amor da juventude.

Crítica

Apresentado enquanto comédia romântica, Notre Dame (2019) passa a oferecer desde as primeiras cenas alguns recursos de estranhamento. A rotina da arquiteta Maud Crayon (Valérie Donzelli) se sucede com uma velocidade espantosa, repleta de cortes abruptos na montagem. Os filhos soam como caricaturas infantis, respondendo à mãe em diálogos antinaturalistas. Andando pela rua, a protagonista se depara com um homem anônimo estapeando um sujeito pelo caminho, sem motivo aparente. As ações “sem motivo aparente” serão determinantes para o projeto como um todo. Donzelli, também diretora e co-roteirista, acredita na liberdade de criação para realizar, basicamente, qualquer reviravolta que lhe interessar. Todo artista disporia deste direito, certo? No entanto, a habitual preocupação com a coerência, a coesão e a reação do público é colocada em segundo plano em nome da disposição jovial a negar constantemente a si própria. Assim que Maud comprova o talento para projetos arquitetônicos, ela realiza uma obra típica de amadora. Quando consegue enfim se desvencilhar do ex-marido carente (Thomas Scimeca), aceita recebê-lo de volta. Nenhuma ação é tão sólida que não possa ser desfeita na sequência seguinte.

As peças começam a se encaixar quando uma maquete voa pelos ares. O filme se assume enfim enquanto fantasia, disposta a abraçar o improvável. Esta poderia ser uma das melhores produções natalinas da temporada, exceto pelo fato de não se passar no Natal. Mesmo assim, paira a crença profunda na magia capaz de reparar corações e encerrar desavenças, com a ajuda do destino reunindo amantes afastados. O caráter ingênuo da heroína e dos demais personagens, além da indefinição em meio ao triângulo amoroso (do qual também faz parte Bacchus Renard, interpretado por Pierre Deladonchamps) reproduzem o raciocínio típico dos filmes familiares. Em paralelo, as gags visuais (os tapas na cara, o caráter fálico do projeto do parque, as repetições na prefeitura) completam a aparência de um cinema de reconforto, suficientemente colorido, sorridente e farsesco para funcionar enquanto fábula infantil e romance adulto – não por acaso, o desejo não envolve sexo, a nudez é ridicularizada e os encontros amorosos entre pessoas experientes (Bouli Lanners e Virginie Ledoyen) se assemelham à primeira paixão adolescente.

A disposição à fantasia possibilita cenas simultaneamente belas e jocosas, a exemplo da aguardada união entre heroína e herói, ocultados por um pilar do escritório – em gesto que se assemelha ao cinema clownesco do trio Fiona Gordon, Dominique Abel e Bruno Romy. No entanto, outras passagens não possuem semelhante sucesso no tratamento do humor: a reunião com a advogada, em especial, transparece problemas de montagem e texto, enquanto a introdução do AirBnB soa abrupta até para os padrões velozes desta comédia. Por volta de dois terços da trama, Notre Dame mergulha sem freios no nonsense, fazendo referências ao cinema mudo, ao musical, ao teatro, à pantomima. Até um trecho com material de arquivo é acrescentado pela montagem voraz, mais preocupada em sobrepor elementos do que refiná-los. A obra se transforma numa orgulhosa experiência de excessos, testando seus limites a cada momento. Assim que Maud, Martial e Bacchus concluem alguma piada, a direção vai além, repetindo, reforçando, sublinhando a comicidade. Parte do humor se dilui devido à insistência, perdendo o caráter de novidade ou surpresa. No entanto, algumas piadas se transformam, mudam de alvo, e impressionam justamente pelas idas e vindas, cabendo ao espectador determinar onde se traça o limite entre as esquetes bem-sucedidas e aquelas inconsistentes.

Os atores possuem níveis variados de conforto com este registro. Oferecendo a si mesma o papel de protagonista, Donzelli permite uma inconsequência comum aos personagens masculinos no cinema romântico. Ao contrário das mocinhas tradicionais, ela não precisa aprender com suas falhas nem rever suas posições para garantir a concretização do amor. Muito pelo contrário, Maud sustenta a admiração dos homens, dos colegas de trabalho e da prefeita da cidade, apesar de não demonstrar qualquer esforço em relação a eles. A atriz evita carregar na composição de corpo e voz, visto que a direção é bastante assertiva em si. Junto dela, Pierre Deladonchamps aparenta atuar num filme distinto: ele serve de contraponto realista ao mundo mágico da heroína, um pilar de concretude para a mulher etérea e atrapalhada. A arquiteta representa um aspecto aéreo (há mais de uma cena de voo na trama), enquanto o jornalista a traz de volta à terra. Bouli Lanners, grande ator do cinema físico, é aproveitado discretamente num papel minimalista – talvez seja interessante ao ator compor personagens “comuns” para variar -, enquanto o destaque provém de Thomas Scimeca, intérprete com poucos filmes no currículo, porém muito desenvolto na caricatura depressiva do macho alfa.

É difícil determinar a linha que separa uma obra fluida e ousada de uma bagunça estrutural. O filme não se permite facilmente ser criticado pelos crescentes absurdos, visto que a verossimilhança está longe de constituir o objetivo da direção. Em outras palavras, a narrativa se dispersa demais, com plena ciência de fazê-lo. O terço final beira a aleatoriedade: quanto tudo é permitido, não há mais critérios e a fantasia deixa de impressionar. Claro, a plateia do julgamento se transforma num número musical, por que não? Quando tudo é caos, nada o é. Mesmo assim, valoriza-se os esforços de Donzelli em subverter estruturas tão desgastadas do romance, da comédia e dos filmes de superação. Poucos projetos “adultos” ousam ser tão descaradamente infantis, poucos filmes ingênuos inserem tantas piadas sexuais, poucas trajetórias femininas demonstram tamanha tolerância pelas derrapadas da heroína. Demonstrando tanto o carinho pelos personagens quanto o desprezo pelas estruturas narrativas, o resultado carrega a mesma leveza da imagem de dois amantes flutuando numa bicicleta pelo horizonte parisiense.

Filme visto online no Festival Varilux de Cinema Francês, em novembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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Grade crítica

CríticoNota
Bruno Carmelo
6
Alysson Oliveira
5
MÉDIA
5.5

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