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Sinopse

Kurt Barnert é um artista alemão que conseguiu escapar da Alemanha Oriental. Agora, ele vive seus dias na Alemanha Ocidental, mas ainda assim é atormentado pelos traumas da sua infância sob o regime dos nazistas e da República Democrata Alemã.

Crítica

A estrutura narrativa de Nunca Deixe de Lembrar (2018) constitui seu ponto mais controverso. Ela pode ser considerada astuta e ambiciosa, ou então megalomaníaca e ingênua, como preferir. Ao longo de mais de três horas, a biografia do artista Kurt Barnert (Tom Schilling) divide-se em três blocos distintos: o primeiro, sobre os horrores do nazismo levando à destruição da Alemanha, o segundo, sobre um jovem idealista e apaixonado que faz sacrifícios pela mulher que ama, e o terceiro, sobre o processo evolutivo de um pintor se libertando das amarras da época para descobrir seu estilo. O diretor Florian Henckel von Donnersmarck parte de um melodrama de guerra clássico, salta para um romance e termina numa biografia convencional. Através das partes autônomas, Kurt sequer constitui o protagonista do segmento histórico, antes de se tornar o herói conquistador no terço central, e então ser convertido num gênio na última parte. Existem subtramas demais, e ambições em excesso. Por um lado, é óbvio que o passado familiar e a vivência na Alemanha nazista (e depois, na parte comunista) influenciam a arte de Barnert. Por outro lado, o roteiro nunca permite que essas partes se retroalimentem de modo orgânico.

Tal indefinição produz um efeito singular. Por um lado, a produção possui o cuidado de produção esperado de um gigantesco filme de época, em termos de figurinos, cenários, acessórios, maquiagem. Mesmo personagens coadjuvantes têm direito a flashbacks luxuosos, com recriações de cenários de guerra que duram poucos segundos em tela. Trata-se de uma opulência reconhecida enquanto “cinema de qualidade” pelas premiações internacionais, a exemplo do Oscar, que indicou o drama em duas categorias (melhor filme estrangeiro e melhor direção de fotografia). Por outro lado, a solenidade das cenas torna o resultado folhetinesco. Nas mãos do cineasta, cada imagem carrega o peso de um ato de coragem. Há frases de efeito em profusão, luzes que entram pelas janelas e banham o rosto dos atores, corpos esculturais de pessoas admiráveis dispostos sobre a cama, posando nos terços ideais do enquadramento. O refinamento se converte numa leitura asséptica da História, resultando em pessoas vestindo roupas novas, em cenários organizados, ao lado de objetos com aparência de recém-comprados. O sexo, o aborto, a guerra, a morte, a esterilização forçada, a castração das liberdades artísticas, são todos surpreendentemente limpos. Para um projeto tão interessado nos horrores do século XX, o filme privilegia uma beleza por vezes inverossímil.

Ainda mais curioso é o senso de propósito da narrativa, ou melhor dizendo, o encaminhamento dos fatos. Mesmo dividindo o projeto em três, von Donnersmarck pretende seguir a linha cronológica, da infância do pintor à consagração na fase adulta. Os problemas se encontram nesta estrutura, que às vezes idealiza o protagonista, e às vezes o converte em protagonista de sua própria história. A montagem é condicionada à regra do “E depois?”, saltando freneticamente entre as passagens mais importantes. Kurt vê uma exposição de arte “degenerada” em tempos nazistas, e depois testemunha a tia sendo levada às câmaras de gás, e depois começa a fazer trabalhos manuais, e depois encontra uma mulher linda, e depois abandona tudo para estar com ela... Saltamos em blocos temporais sem termos tempo de descobrir as causas ou consequências de cada ato. Uma cena não parece levar à próxima, existindo apesar dela. A costura forçada entre os conflitos ocorre pela linha do tempo, com ajuda de letreiros indicando o ano específico. 1948 foi o ano da descoberta artística, 1951 foi o ano da descoberta amorosa etc. Mas o que o autor teria a dizer sobre seu personagem? Nunca Deixe de Lembrar resume-se à descrição. Ele acompanha Kurt Barnert ano após ano, porém não sugere que o rapaz era particularmente criativo, que revolucionou algum período, que reagiu de maneira peculiar ao nazismo, ou ao comunismo. Ele cresceu, viu, aprendeu, pintou, fez, amou, brigou, lutou. Este é um filme de verbos.

Devido à abordagem mais fatual do que psicológica, terminamos o projeto conhecendo pouco sobre as sensações e desejos íntimos do protagonista. Tom Schilling revela-se um ator de amplos recursos, fornecendo expressões ambíguas, muito proveitosas à direção. No entanto, a direção impede a elaboração de qualquer posicionamento através dessa história. Sugere-se, em determinado momento, que os opostos nazismo e comunismo se uniriam pelo imperativo de colocar o coletivo acima do individual, e que ambos seriam igualmente prejudiciais às artes. Trata-se de uma hipótese forte, porém jamais aprofundada. Insinua-se que o protagonista teria descoberto o passado nazista do sogro ao analisar as próprias pinturas. A tese é interessantíssima, mas tampouco se desenvolve. Apresenta-se a ideia de que toda a obra de Barnert possui raízes autobiográfica, ainda que ele apresentasse os quadros à imprensa como sendo retratos de anônimos. A contradição entre aparência e essência, ou a reflexão sobre o uso da mídia a favor do pintor não se converte em motivo de conflito. A passagem do nazismo para o comunismo seria rica em implicações, caso o drama não estivesse tão apressado em saltar para novas cenas amorosas e novas gestações da esposa Ellie (Paula Beer). Há um senso de prioridades e de foco desequilibrados na condução ficcional.

Outra sugestão – a mais questionável de todos – se encontra na aproximação entre a loucura e a genialidade. A frase “Nunca desvie o olhar”, que justifica o título internacional do projeto, é transmitida da tia esquizofrênica ao sobrinho, e tanto no início quanto no final, a montagem permite associar o talento para as artes à loucura. A romantização das doenças psíquicas constitui uma tendência particularmente nociva à representação dos artistas (Van Gogh que o diga), e se repete aqui, ainda que de maneira atenuada. Há talento e variações na composição de Schilling, há recursos de sobra para Paula Beer, ao passo que Sebastian Koch recebe um personagem fascinante em mãos (um profundo admirador do nazismo que mergulha ferozmente no comunismo). No entanto, nenhum deles é capaz de ultrapassar a grandiloquência e austeridade do projeto. Ironicamente, o pintor que simulava sangue escorrendo nas telas, jogava latas inteiras de tinta sobre tecidos no chão e marcava seus pés sobre as obras ganha uma biografia sem visceralidade, nem o senso de inovação que o artista teria proposto em sua época. Pelo imaginário de von Donnersmarck, Barnert deve ser associado ao cabelo impecavelmente arrumado, aos ternos feitos sob medida e ao corpo escultural, ao invés de um artista em conflito, produzindo arte em tempos de revolução Histórica e ideológica.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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