Crítica
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Sinopse
Joana é uma ciclista que sofre um estranho acidente. Mesmo que tenha saído ilesa, ela decide esconder o episódio da mulher com quem está prestes a começar uma família. Mas, um vídeo do acidente viraliza e muda as coisas.
Crítica
Nada mais do que um mero desvio de percurso, um incidente inesperado, mas forte o suficiente para alterar não apenas as vidas daqueles diretamente envolvidos, mas também dos que orbitam ao redor destes. Um momento extremo no qual ninguém sabe ao certo como reagir, e a partir do qual muita reflexão se fará necessária. Não apenas com questionamentos a respeito da própria forma de lidar com o imprevisto, mas também sobre os motivos que levaram ao enfrentamento. Teriam as palavras ditas e gestos executados realmente representados os sentimentos despertados? O que houve foi fruto do instinto e de uma ausência de reflexão ou retrato de uma profunda tristeza e insatisfação que há muito vem corroendo os tecidos sociais de uma dita civilização. Em O Acidente, longa de estreia de Bruno Carboni, talvez não haja, como se percebe na tela, muito a ser dito pelos personagens. Mas vale tanto para eles, como, e principalmente, para aqueles na audiência, reconhecer a necessidade de se dar um passo para atrás, exercer um preciso distanciamento, e refletir não apenas sobre o ocorrido em si, mas também sobre os sentimentos despertados em cada um dos lados e as consequências de seus atos, tanto os primários, mas também aqueles mais frios e calculados.
Há mais de uma década (em 2011, para sermos exatos), em Porto Alegre, um motorista acelerou com seu carro diante de uma turba de ciclistas que vinham em sentido contrário, atropelando mais de vinte esportistas. Esse fato, verídico, ganhou o noticiário nacional e não seria surpresa se tivesse servido de inspiração para Carboni, também autor do roteiro, ao lado de Marcela Ilha Bordin. Afinal, é um episódio similar que dá início ao seu filme. Quando Joana pega sua bicicleta e parte rumo a mais um compromisso, não imaginava o quão diferente aquele dia seria. Pois num cruzamento qualquer tudo irá mudar, tanto para ela, quanto para os que estavam no carro que veio na direção contrária e a cortou no trânsito, a ponto de tirá-la de sua direção original. Indignada com o que considerou uma afronta, a jovem, ainda que em condição mais frágil, não reconheceu essa debilidade e partiu para o confronto, exigindo satisfações – um pedido de desculpas talvez tivesse sido suficiente. Mas a que se encontrava no banco atrás do volante também tinha suas preocupações com as quais lidar, e o modo como lidou frente a este embate não pode ser visto como razoável.
Davi e Golias se enfrentaram em uma rua da cidade. A que acabou atropelada tenta recuperar seu orgulho e agir como se nada tivesse acontecido, mas um vídeo – sinal dos tempos – registrando o fato acaba viralizando na internet, e todos ao seu redor passam a vê-la não mais como aquela mulher independente e segura de si, mas como uma vítima carente de cuidados. As feridas que precisam ser curadas vão se acumulando. Soma-se a isso uma há muito aguardada gravidez, que finalmente começa a se manifestar. Sua esposa (companheira, namorada) se toma de preocupações, gerando um sentimento no casal que a protagonista queria a todo custo evitar. Mas o drama vai além desse duo: há ainda o outro lado da questão. Um casal separado, um homem preocupado com o filho, uma mulher abandonada e tomada por um espírito de revolta e insatisfação, uma criança voltada para dentro de si, tentando encontrar sentido em tudo que se passa consigo e sua família. Joana pode simplesmente relevar, como também, se manifestar, influindo decisivamente no destino daqueles que lhe afetaram.
Mas há um outro caminho, que é o da observação. E, assim, aos poucos, outros debates irão ganhar espaço. Frases aparentemente soltas ao vento, como “você acredita que ele pode ser... igual a vocês?” ou “não nos olhe assim, como se fosse melhor do que nós” representam mais do que as intenções do momento em que foram proferidas poderiam dar a entender. Homofobia, misoginia, classicismo social e outras complicações se misturam em um caldeirão no qual a ordem não faz diferença, mas o resultado é sempre feio e assustador. Tem função determinante em alcançar a sensação de estranho incômodo almejada pela direção o embate que, da metade em diante da história, começa a se desenhar entre duas mulheres. Joana, vivida por Carol Martins, é um vulcão prestes a entrar em erupção. O espectador a acompanha desde o início, e, portanto, presenciar suas mudanças de humor e intenções se dá de forma mais sutil, pois esparsa pelo tempo – o que em nada diminui o impacto de sua presença em cena. Porém, quando Gabriela Greco, como a motorista responsável pelo tal acidente, passa a se impor como agente transformador, o conflito adquire outras dimensões. Sem dizer muito, apenas atenta aos olhares e expressões, transmite um manancial caudaloso de reticências e frustrações, represadas por obrigações e demandas que tanto a sufocam como se esforçam em eliminar uma humanidade que encontrará, assim como um rio em seu curso, os meios para ir adiante.
Poderia ser apenas um cruzamento banal, mas do que seriam desses encontros e desencontros não fossem as pessoas que neles mergulham sem chances de retorno? O Acidente, assim, consegue escapar de uma suposta condição genérica – como, por vezes, o título reducionista pode dar a entender – justamente pelo cuidadoso trabalho que desenvolve tendo o episódio ao qual faz referência no batismo como início da conversa, mas também pelo delicado estudo dos personagens aqui reunidos. Seco, em algumas passagens até mesmo bruto e cortante, mas indo direto ao ponto, Bruno Carboni deixa claro saber o que procura alcançar com esse discurso, ainda mais quando tudo deságua em uma explosão singela, mas poderosa o bastante para eliminar dúvidas e fortalecer aquilo que realmente importa. Um gesto até mesmo simples, mas dono de uma energia tão singular frente a qual se mostra ser impossível manter-se indiferente. Quando pontes são construídas não por iniciativas solitárias, mas pela união de forças, muito mais difícil será derrubá-las. Trata-se de um exercício raro, mas cujo valor não pode – nem merece – ser desprezado. Eis a lição que fica.
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