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Crítica


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Sinopse

Marius trabalha como advogado numa renomada firma da Lituânia. Ele se envolve com diversos homens, mas nunca possui relacionamentos duradouros. Quando conhece Ali, um refugiado sírio, descobre a difícil realidade de homens gays perseguidos, e passa a ajudá-lo no processo de regularização de documentos.

Crítica

Antes de desenvolver a premissa, O Advogado (2020) investe na ambientação. O espectador se encontra numa Lituânia fria, tanto no sentido climático quanto no que diz respeito às relações humanas. Um grupo de amigos gays se encontra para jantar num local escuro, chique, entre taças de vinho e conversas em meio-tom. O protagonista Marius (Eimutis Kvosciauskas), advogado corporativo, sussurra cada frase, sem alterar o tom de voz quando recebe a notícia da morte do pai, ou quando é rejeitado por um rapaz transexual. A trilha sonora, em estilo smooth jazz, aposta nas percussões vaporosas, inclusive quando os personagens caminham pelas ruas durante o dia. Este drama sisudo, de cortes secos e planos fixos investe num imaginário de elegância imputado às classes privilegiadas. O herói não possui problemas familiares, com amigos, nem dificuldades financeiras ou profissionais. Jamais o vemos advogando, embora ele seja procurado com insistência pelos clientes, como se fosse o único praticante do direito em seu país. O diretor Romas Zabarauskas cria a impressão de um filme em câmera lenta – embora não utilize o recurso, o resultado é lânguido e moroso.

Marius se torna uma figura de difícil identificação. Ele é descrito como frio, inacessível, arrogante e incapaz de perceber sua posição social privilegiada. Além disso, o homem rico nutre o fetiche por operários, segundo as provocações de um amigo. Após uma conversa de menos de cinco minutos com Ali (Dogac Yildiz) num chat erótico, o advogado decide transformar o refugiado em sua missão de vida. Nunca se compreende ao certo o que une os dois homens, que demonstram pouco afeto ou interesse um pelo outro. As conversas entre ambos são protocolares. No entanto, as figuras belas e musculosas se unem em torno da tarefa de proteger pessoas vulneráveis. “Você pode ser a Cinderela, mas eu não sou o Príncipe Encantado”, argumenta Marius, diante da dura responsabilidade de ajudar Ali. “Eu não sou uma vítima, nem um super-herói. Isso não é um pornô”, responde o estrangeiro pouco tempo mais tarde. Como se percebe, os diálogos não se destacam pela sutileza. Ainda mais preocupante é o discurso do white saviour, no caso, a defesa do europeu branco e privilegiado destinado a salvar minorias. Marius se humaniza, se solidariza com a causa alheia e descobre o amor verdadeiro. Ele era um Príncipe Encantado, afinal, pronto a resgatar a donzela em perigo.

O olhar salvacionista se estende à objetificação de Ali, conhecido como “o modelo” pelos colegas de acampamento. Hollywood tem percebido gradativamente os problemas éticos de assumir feridas de terceiros sem lhes dar voz nem protagonismo. No entanto, este filme insiste em enxergar o homem prostituído e solitário enquanto vítima, apesar das objeções do próprio. Ali menciona traumas vividos em sua cidade natal, porém Zabarauskas não fornece qualquer símbolo desta dor – uma foto, um objeto, um telefonema, o que seja. Pela ausência de indícios, o processo de regularização do refugiado parece um caso perdido, algo que o roteiro de fato abandona de maneira abrupta. Face ao amante, Marius constitui um estranho advogado que jamais se investe em qualquer tarefa, desistindo de cada responsabilidade em que se vê implicado. Já o garoto de programa oferece-se ao outro com uma piada: “Desta vez é de graça”. Existe algo muito amargo na pretensa história de amor com tamanho desnível hierárquico entre os amantes, e narrada pela perspectiva daquele que não corre risco algum. Nota-se o paternalismo, a condescendência e os vícios de colonizador neste retrato distante sobre as feridas da imigração.

Afinal, a direção jamais se interessa pela história de Ali, aliando-se a Marius neste aspecto. A indiferença no retrato sobre esta “questão de direitos humanos”, segundo o protagonista, transparece nas atuações. Aparentemente, o cineasta busca o caráter delicado ao invés de uma história de amor arrebatadora. No entanto, desenvolve personagens desprovidos de transformações ao longo da trama: o lituano ostenta a mesma expressão do início ao fim, enquanto o sírio contorce o rosto, faz caretas e poses, como num ensaio fotográfico. O afeto, as dúvidas, as dores e a evolução do amor propriamente dito ficam em segundo plano. Estes homens são limitados às suas pequenas ações, e sobretudo aos corpos atraentes e/ou dominantes. O refugiado será visto, da primeira à última cena, enquanto corpo viril utilizado para seduzir e manipular. Eles se convertem numa conquista notável um para o outro: Marius obtém o coração do jovem cobiçado por todos, já Ali capta a atenção de um advogado capaz de ajudá-lo. Talvez o aspecto utilitarista diga algo sobre os relacionamentos contemporâneos, ou apenas esvazie os laços afetivos em cena.

O Advogado visa alertar à fragilidade dos grupos LGBT na Europa, onde supostamente encontrariam um cenário mais acolhedor. O roteiro efetua um discurso generoso, ainda que didático, sobre a transexualidade, enquanto acena à dificuldade dos gays perseguidos por sua orientação sexual. Talvez fosse interessante contar a história pelo ponto de vista dessas pessoas, ou pelo menos permitir que se impusessem na história, dividindo o palco com Marius. Ora, o jovem transexual é esquecido assim que o longa-metragem conclui o discurso de aceitação, e Ali se resume ao objeto de proteção nas mãos do lituano (através de uma solução próxima à cafetinagem). O desfecho introduz inesperada malícia num filme tão regrado até então. Wong Kar-Wai e Apichatpong Weerasethakul vêm à mente, menos como inspirações do que como referências diretas. Zabarauskas promove um cinema orgulhosamente gay, onde a sexualidade constitui o foco do início ao fim, abrindo-se às diferentes vivências da homossexualidade masculina no continente. No entanto, as boas intenções precisam ultrapassar a idealização de heróis, mártires, dos corpos gays padronizados e do inevitável amor romântico.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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