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Sinopse

O heterônimo de Fernando Pessoa volta a Portugal após uma temporada autoexilado no Brasil. Ela é instado a colocar de lado sua índole contemplativa e tomar partido dos eventos históricos de sua época.

Crítica

Diante de uma adaptação da literatura ao cinema, convém, talvez por prudência, quiçá por obrigação, refletir a respeito dos limites (se eles existirem) entre o concernente ao escritor e aquilo que diz respeito ao trabalho interpretativo do cineasta. Baseado no livro homônimo de José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis tem o pressuposto de tratar personagens e circunstâncias com uma solenidade reverente ao original, envelopando a celebração da palavra com a moldura plástica que, de certo modo, é vizinha da metalinguagem. O cineasta João Botelo remonta aos anos 1930 em Portugal, não tentando reconstituir a época orientado pela verossimilhança histórica. Nesse esforço de transposição, recorre referencialmente à forma como o cinema da década citada representava sua realidade, vide o clima alusivo à vertente noir. A belíssima fotografia de João Ribeiro, com um preto e branco bastante saturado e constantes halos ressaltando detalhes, ao ponto fomentar um bonito clima onírico, encabeça a construção estético-narrativa que vira um fundamento visual/dramático.

Para compreender profundamente o diálogo entre as obras (a original e a derivativa), seria necessário ter lido a primeira. Todavia, mesmo sem tal conhecimento prévio, é evidente que O Ano da Morte de Ricardo Reis se empenha em contemplar vários aspectos dessa literatura, especialmente a prosa poética de José Saramago, escritor afamado por prescindir de pontuação e condensar grandes reflexões em frases aparentemente displicentes. O cineasta João Botelho persegue e valoriza essa essência sintética, frequentemente orquestrando as cenas para que elas culminem na demonstração da faculdade luminar das sentenças oriundas do cotidiano do poeta. Ricardo Reis (Chico Diaz) é um dos quatro heterônimos – autor fictício, com personalidade e estilo singulares – de Fernando Pessoa (Luís Lima Barreto). Depois de passar mais de 15 anos do Brasil, ele retorna à chuvosa Portugal durante o auge do período salazarista, quando os militares regiam a nação sob os preceitos de um obscurantismo autoritário. O protagonista intenta passar ao largo da política, mas ela o alcança.

Inclusive por conta da interpretação excelente de Chico Diaz, Ricardo Reis consegue ser lido como homem do seu tempo, tendo resguardada a integridade do prisma contraditório de monarquista descrente em reis e contrário à democracia. Boa parte de O Ano da Morte de Ricardo Reis é sobre a forma como essa invenção dialoga com seu equivalente factual que acabara de morrer e tem como (di)vagar. O simples fato de Ricardo e Fernando falarem sobre tudo, das trivialidades do comportamento rotineiro às naturezas intrincadas do imponderável, já se configura numa potência, por si capaz de criar uma vultuosa camada lírica. Entretanto, os contornos da encenação dão o tônus de tragédia anunciada. A finitude do sujeito é prenunciada pelo título. João Botelho, embora não lembre insistentemente o espectador de que seu protagonista inevitavelmente morrerá naquele ano, deixa aberta aos que não se desprenderam da informação disposta antecipadamente a possibilidade da leitura fúnebre. Ricardo dialoga consigo à beira do fim, nesse ínterim encarando falências.

A questão política não surge apenas nos comícios salazaristas, nos interrogatórios da polícia, nas demonstrações do nacionalismo excludente. Em O Ano da Morte de Ricardo Reis, Ricardo é colocado em cena essencialmente como um moribundo corpo ambivalente, iluminado pela sensibilidade notável, mas de um classicismo reprovável no trato com Lídia (Catarina Wallenstein), a criada com quem mantém o relacionamento furtivo. Diante de Marcenda (Victoria Guerra), fruto da burguesia, ele se comporta de forma bem diferente, como se à proletária não coubessem protocolos da civilidade e cortesia, por exemplo. Mas até essa discrepância é oferecida conjuntamente com suas respectivas nuances, sem acusações ou persecuções deterministas. Há muito de Saramago no filme, por certo, mas existe também, de um jeito análogo, a capacidade do diretor de respeitar, mas sem tornar-se cativo. O resultado é denso, por vezes voluntariamente lento – mimetizar a cadência também é vital –, porém substanciado pelo lindo trabalho do elenco e o constante elogio aos artifícios, estratégias para reter os traços da realidade, seja ela a concreta ou a intangível.

Filme visto online na 44º Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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