O Ano do Descobrimento
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Luis López Carrasco
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El año del descubrimiento
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2020
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Espanha / Suíça
Crítica
Leitores
Sinopse
Crítica
Pode levar algum tempo até os olhos se acostumarem à cacofonia de O Ano do Descobrimento (2020). Começamos dentro de uma festa escura, com a câmera próxima demais dos rostos indistintos. As falas simultâneas, misturadas à música alta, são praticamente incompreensíveis. Além disso, a janela numa espécie de widescreen divide a imagem em duas partes, cada uma delas próxima do quadrado. Durante 95% do filme, telas duplas interagem uma com a outra. Mas que efeito o diretor Luis López Carrasco tiraria desta divisão? Uma vez que as conversas enfim começam dentro de um bar, as duplas e grupos em torno da mesa discutem banalidades. Falam sobre suas vidas cotidianas e os compromissos após a refeição. Por que a linguagem se constrói de maneira tão dispersa, e de que trata o documentário, afinal? A pista sugerida pelo título desperta interesse enquanto ironia. Aos países colonizados como o Brasil, seria comum pensar no “ano do descobrimento do país” (termo controverso em si, visto que as nossas terras nunca estiveram “perdidas”, e que já havia comunidades vivendo aqui). Para os espanhóis, no entanto, trata-se de um descobrimento muito específico acerca da capacidade de luta do povo contra as forças opressoras.
O ano mencionado pelo título é aquele de 1992, quando Barcelona sediava os Jogos Olímpicos e Sevilha recebia uma exposição imensa. Enquanto isso, fora dos holofotes, nas demais cidades, os habitantes sofriam com a opressão policial e a crise econômica – mais uma vez, uma realidade bem próxima dos brasileiros, sobretudo os cariocas durante as Olimpíadas. No caso específico da Espanha, a mistura do franquismo recém-superado com a implementação de uma monarquia parlamentarista e a eleição de prefeitos e governadores socialistas provocou um caldeirão ideológico explosivo que sucumbiu à crise do petróleo, afundando a economia local. Entretanto, o cineasta define esta temporalidade e as questões trabalhistas (greves e demais lutas sindicais) como prioritárias quanto atinge uma hora de duração. Durante a longa parte inicial, ele prefere que o espectador se acostume com o dispositivo, compreendendo as múltiplas formas de que as mini-telas adjuntas podem se comunicar. Às vezes, elas representam o plano e contraplano (ou seja, temos acesso à pessoa que fala e àquela que escuta simultaneamente). Em outros momentos, o som provém de uma das telas, enquanto a outra revela outro cliente do bar, silencioso, sentado ao balcão. Ainda existem os instantes em que uma das telas se apaga, sendo preenchida por mini-letreiros ou por comerciais de televisão da época.
É difícil acusar o criador de não explorar a fundo as funcionalidades da imagem dividida. Praticamente toda forma de aproximação ou choque entre os quadros é produzido por Carrasco, ao limite do exagero: a certa altura, as falas de um personagem contrastam com letreiros independentes logo ao lado. Para onde nossos olhos devem se direcionar? O cineasta procura o estranhamento típico da videoarte, na qual a ruptura da linearidade constitui uma produção de significado em si. Por mais que o filme possua farta documentação dos embates históricos, ele aposta numa estética excessivamente chamativa, como se indicasse que a pluralidade de vozes importa tanto quanto o conteúdo proporcionado por cada uma delas. Em outras palavras, O Ano do Descobrimento reproduz pelo estilo o caos da época, ao invés de explicá-la. Ele tem ciência de que os acontecimentos implicam em múltiplos pontos de vista, razão pela qual possibilita a todas as vozes serem escutadas: os jovens socialistas, os jovens conservadores, os idosos apaixonados pelo franquismo e as senhoras integrantes de movimentos sindicais desde 1970. As conversas carregam a vantagem de ocorrerem entre amigos, à mesa, com um cigarro aceso. Embora as pessoas tenham plena ciência da câmera, mencionando o aparelho e o boom algumas vezes, elas transparecem uma louvável espontaneidade nas atitudes. Os temas podem ter sido estimulados pela direção, mas o conteúdo das conversas certamente não o foi.
Do segundo terço em diante, o projeto se converte num estudo aprofundado e engajado sobre as transformações históricas da Espanha. Ao invés de convocar historiadores ou representantes oficiais, Carrasco prefere as pessoas comuns, trabalhadores quaisquer cujas histórias familiares compõem um amplo mosaico do país. Há pelo menos vinte personagens recorrentes ao longo das conversas jamais dirigidas para a câmera, e sim uns para os outros. Os protagonistas do discurso coral partem da condição de anônimos universais a pessoas com experiências muito particulares em relação aos governantes e empresários. As conversas de bar, com as pessoas falando alto, interrompendo umas às outras, provocando e rindo atenuam o caráter sisudo da exposição histórica. Torna-se muito mais fácil ao espectador comum se identificar com aquelas pessoas, cheias de opiniões estanques sobre quaisquer assuntos, do que com os eventuais especialistas dos documentários didáticos. O diretor fornece uma porta de entrada acessível à política europeia contemporânea, incluindo debates sobre fake news, a dissolução da esquerda na Grécia ou a ascensão da extrema-direita na Itália, recorrendo a pouquíssimos materiais de arquivo (geralmente, imagens de protestos ou comerciais de televisão da época).
Mesmo assim, o discurso é prejudicado pela duração excessiva. O documentário tem dificuldade em justificar os 200 minutos, sobretudo no terço inicial. Os interessantes embates verbais entre os grupos de amigos se tornam repetitivos, e seriam capazes de provocar uma comunicação mais ampla caso no caso de tratamento mais enxuto. Em paralelo, os depoimentos evitando a câmera são suspensos nos últimos minutos, quando um sindicalista de fala bastante articulada efetua uma ponte entre o ativismo de ontem e o ativismo suposto para o futuro. Na reta final, o diretor se coloca em cena fazendo perguntas convencionais, domesticando a radical estrutura do início. Apesar dos percalços, um farto material humano se desenvolve pelo caminho, com a contribuição de um par de câmeras muito atento, uma captação de som perfeitamente clara (algo notável dentro de um estabelecimento barulhento) e uma estética instigante por si só (as pessoas contemporâneas são filmadas com a textura do digital de décadas atrás). Há desejos de ruptura e subversão em excesso, cabendo a cada espectador julgar quais considera pertinentes ao discurso, e quais soam como exercício de vaidade do autor. No esforço de criar um épico sobre as lutas sindicais e a vitória inédita obtida em 1992, Carrasco extrai lições capazes de unir a Espanha das gerações precedentes e a Espanha atual. O filme mira o passado, mas não para de pensar no presente.
Filme visto online no 9º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, em outubro de 2020.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Bruno Carmelo | 7 |
Chico Fireman | 7 |
Francisco Carbone | 7 |
Nayara Reynaud | 8 |
MÉDIA | 7.3 |
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