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Sinopse

A multinacional Aron atravessa um escândalo quando se descobre um rombo de 14 milhões nas contas da empresa. O diretor e seus filhos, que gerenciam os negócios há anos, se desesperam e tomam caminhos diferentes para reparar o problema. Enquanto isso, a principal suspeita pela fraude recai sobre Marie, uma tímida contadora de meia-idade.

Crítica

Uma rica família está em crise: descobre-se um rombo de 14 milhões nos cálculos da empresa, no instante em que se discute a sucessão do patriarca a um dos três filhos, com distintos graus de envolvimento nos negócios. Quem teria emitido notas de pagamento dobradas, ou deixado de recolher a fatura dos clientes? Por qual motivo? O Atlas dos Pássaros (2021) se inicia com o suspense no mundo empresarial, onde cada membro do clã milionário poderia constituir o responsável pela fraude. Percebe-se logo que o pai sequer pode confiar nos filhos, interessados no controle das máquinas e na herança prevista em testamento. O diretor Olmo Omerzu poderia investir numa narrativa tensa a respeito dos interesses financeiros superando os laços de sangue, ou o individualismo e a ganância ultrapassando o afeto, a exemplo de tantos filmes e séries contemporâneas sobre núcleos mafiosos. O enfarto do dirigente, desde o princípio, catalisa o conflito e nos prepara para o choque entre irmãos, irmã, pai, funcionários e acionários. No entanto, o projeto elimina a tensão ao revelar com rapidez a origem dos problemas e a maneira de solucioná-lo.

O drama segue por uma tangente inesperada, revelando a culpa da ingênua contadora Marie (Alena Mihulová) nos lançamentos equivocados. Ela teria agido sem qualquer malícia ou senso de vingança contra os arrogantes membros da família, apenas um desejo de obter dinheiro para comprar uma casa com o namorado virtual, que nunca conheceu pessoalmente. Esta escolha de roteiro causa estranhamento: tendo à disposição inúmeros dilemas orgânicos, relacionados ao imbróglio fiscal, o texto privilegia um problema externo, sem conexão direta com o tema. A aproximação entre a perversa estrutura corporativa e os atos da contadora soa inverossímil: a mulher foi capaz de desviar, sozinha, uma quantia impensável de dinheiro de maneira discreta e eficaz. Em contrapartida, foi tola o bastante para se envolver durante anos com um sujeito invisível, que lhe pedia a soma colossal em troca de migalhas risíveis de afeto. A narrativa se corta em duas partes: por um lado, a manipuladora esfera pública dos homens, onde patrões e concorrentes se devoram sem piedade, e por outro lado, a sonhadora esfera doméstica das mulheres, voltada aos maridos e aos amores.

Deste modo, as personagens femininas ganham um retrato nada elogioso. Além da histérica e profundamente ingênua Marie, a filha demonstra um aspecto igualmente choroso face às pressões do chefe (seria hereditário?) e a única filha mulher, podendo se envolver na direção da empresa, prefere ficar em casa cuidando do bebê. Ela será descrita como pouco inteligente ao revelar uma conversa secreta por falta de atenção. Talvez este ponto de vista se justificasse pela postura brutal dos três homens à frente do controle do dinheiro (o pai e os dois filhos), porém incomoda quando se torna o posicionamento do próprio filme. O roteiro nunca se esforça para humanizar estas mulheres nem apresentar a subjetividade delas para além do interesse romântico e familiar. É surpreendente encontrar uma produção do século XXI dotada de visão tão arcaica das prioridades femininas, na época em que mesmo os produtos formatados de Hollywood se voltam a histórias inclusivas e um pouco mais igualitárias, por pressões de grupos minoritários. No caso do filme tcheco, imagina-se que a presença feminina em cargos de criação (direção, roteiro, fotografia, montagem) contribuiria à percepção de uma representatividade desequilibrada.

Além disso, os pássaros do título possuem uma função estranhíssima na narrativa. Primeiro, as amantes do dirigente são nomeadas com apelidos de aves no telefone celular - algo que surte efeito nulo no andamento dos conflitos. Segundo, e mais importante, os pássaros cantando nas árvores têm sua melodia “legendada” com frases que vão da lição de moral ao comentário econômico, passando por lemas marxistas. “Ser pobre e livre de dívidas. Essa é a maior riqueza de todas”; “Sem família, a pessoa treme no caos infinito”; “Qualquer coisa é melhor do que esperar” e “O prazer dos poderosos advém das lágrimas dos pobres” são alguns dos ensinamentos proferidos pelos animais. Caso estivesse buscando alguma forma de humor absurdo, nos moldes de Roy Andersson, Omerzu precisaria desenvolver este preceito, e sobretudo, promover uma relação dos mesmos com os personagens. Ora, as frases são incluídas posteriormente em pós-produção, descoladas da história e da trama, sustentando a aparência de um pensamento posterior às filmagens. Pela variação de tom, não constituem nem um comentário sarcástico a respeito da situação familiar, nem a digressão de um possível narrador onisciente. O artifício se torna mera malícia e vaidade do cineasta.

Por fim, O Atlas dos Pássaros se perde em termos de objetivos e instrumentos de linguagem. Em alguns momentos, adota uma captação naturalista e fria, a exemplo dos planos distanciados das salas de reunião transparentes, de onde surge a impressão de que os personagens são espiados. Em outros, aposta em efeitos íris escurecendo a borda da imagem, ou literalmente se fechando sobre o rosto do protagonista, como nos recursos de montagem típicos do cinema mudo. A utilização de telefones celulares e sites de encontro revelam a preocupação em situar a trama na realidade contemporânea tcheca, mas as técnicas da família para buscar o namorado golpista resultam arcaicas. Nunca compreendemos de fato o que se produz nesta fábrica, muito menos o impacto da crise nos funcionários e familiares - o roteiro se preocupa apenas com as altas classes em busca de manutenção do poder. Nota-se a vontade de ser “malvado”, incisivo, em sequências como o tapa no hospital e o confronto com Marie no chalé. No entanto, tamanha truculência serve a uma visão de mundo retrógrada das finanças e dos indivíduos, priorizando a perversidade para fins de prazer cênico ao invés de um universo de relações humanas e financeiras complexas.

Filme visto online na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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