Crítica
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Sinopse
Em O Barulho da Noite, Sônia é uma mulher invisibilizada pelo marido que se sente subjugada por Agenor, agricultor e folião do Divino Espírito Santo. A chegada do sobrinho de Agenor, Athayde, muda completamente essa dinâmica familiar.
Crítica
No meio do nada, onde qualquer quebrar de graveto é capaz de interromper a concentração, o silêncio é moeda corrente. Fazer rir, esbanjar alegria e se mover motivado pelo calor humano tanto aquece, quanto provoca. Em alguns, é combustível de vida. Para outros, servirá de motivo para irritações e como motivo de desprezo. Sônia é a mulher no centro dessa indecisão. De um lado, o marido, Agenor, que transforma a vida das filhas a cada banho de rio, em cada embalo de boa noite, em toda brincadeira pela qual correm sem cansar. Mas há uma inquietude no coração dessa mulher. E quando Athayde, sobrinho do companheiro, chega para passar uma temporada, será no corpo do jovem onde ela encontrará uma oportunidade tanto de fuga, quanto de mudança. Quando o sol se vai e restam apenas a fraca luminosidade das lamparinas e o brilho distante das estrelas, todo movimento precisa ser bem calculado. O Barulho da Noite, longa de estreia de Eva Pereira, parte de um imbróglio caseiro para, sem pressa ou urgência, ir desvendando um drama mais complexo e abrangente. Eis, portanto, uma obra que não se acaba em si, permanecendo com o espectador para além da duração de sua narrativa.
Não há respostas fáceis no filme também escrito por Pereira. Cineasta estreante no formato, assume muitos desafios nesse trabalho. Em nem todos o resultado se mostra eficiente, mas nem por isso deixa de possuir o mérito de haver tentado. Veja, por exemplo, a própria sinopse, esmiuçada com um pouco mais de cuidado no primeiro parágrafo deste texto. Essa mulher está, de fato, com algum incômodo? O esposo, o homem da casa, seria tão cego diante do que se desenrola debaixo do seu teto? E o que dizer sobre Athayde, quem nem mesmo da família pode ser? As pistas estão espalhadas por todos os lados, desde o início da narrativa. A cada movimento, algo de novo surge, podendo ser levado em conta ou não. Eis, portanto, um dos dilemas da trama: com tantas portas sendo abertas e possibilidades se manifestando, como decidir por quais seguir? Algumas serão desenvolvidas, outras abandonadas sem ressalvas. As conjecturas, quando em tamanho número, podem acabar soando como um ruído, alterando inclusive a percepção do que, de fato, se encontra na tela.
Há, ainda, uma questão de casting, de escolha de elenco. No centro dos acontecimentos está uma família embrutecida, distante de tudo e todos, cujos próprios mantimentos que garantem sua subsistência vêm da terra ou chegam até eles por meio de um mascate que os visita de tempos em tempos, uma vez que não há como adquirirem por conta própria nas redondezas. Marcos Palmeira é um ator dos mais versáteis, e se encaixa nesse tipo de papel com precisão, abandonando seu lado urbano sem maiores meandros e se assumindo como esse ser doce, ainda que duro. Emanuelle Araújo, por outro lado, por mais entregue que se mostre, é dona de uma beleza superlativa, uma estética que, em casos assim, termina por traí-la. Talvez se fizesse necessário um trabalho mais detalhado de composição, uma maquiagem mais caracterizada, algo que impedisse a audiência de ser distraída por sua aparência. E isso não diz respeito ao seu desempenho como intérprete, pois está inegavelmente comprometida e, frente a um mergulho profundo, carrega o desenrolar dos acontecimentos praticamente sozinha. É pelos olhos dessa mulher que este episódio vai gradativamente ganhando peso, enquanto aos homens é destinado posições mais confortáveis, tanto de porto seguro como de ameaça latente (ou concreta).
Há outras opções da direção que também alcançam efeitos questionáveis. Athayde (Patrick Sampaio, de Um Animal Amarelo, 2020), desde sua entrada em cena, nunca chega a ser visto por completo. A câmera, diante dele, está sempre nervosa – tal qual a protagonista, imagina-se – e o enquadra de forma enviesada, uma orelha aqui, um olho direito acolá, o torso quando mais distante, mas o rosto escondido por detrás do chapéu de palha. Mais do que uma mera presença a ser acomodada, ele é um perigo, um elemento disruptor, que assim como desperta curiosidade, também provoca reações extremas. O filme se ressente da saída de cena um tanto abrupta de Palmeira, e nesse ponto os eventos a seguir exigirão ainda mais de Araújo, mas não só dela: Alícia Santana e Anna Alice Dias, as duas meninas que interpretam as filhas do casal, também serão cobradas. E, por mais que suas entregas não estejam na mesma medida de seus colegas adultos, há um evidente investimento por parte delas, ainda mais pelo enredo envolvê-las em situações não somente delicadas, mas de forte violência. O registro que se dará na tela está todos os dias nas páginas de jornais ou nos noticiários televisivos. A diferença é que aqui houve tempo para se importar com os personagens. A dor delas, portanto, será também do público – e essa conexão, independente de qualquer outro porém, se mostra estável.
Fruto de esforços vindos do Tocantins, estado de pouca – ou quase nenhuma – tradição no cenário cinematográfico brasileiro, O Barulho da Noite guarda sua força na narrativa, que abriga elementos que não podem ser ignorados. Assim, permanece com o espectador mesmo após sua conclusão, favorecendo a reflexão e proporcionando uma troca que vai além da experiência fílmica. Este, talvez, seja o maior dos seus méritos, independente de qualquer tropeço que possa ser apontado em um ou outro quesito – que existem, e, da mesma forma, não passam desapercebidos. O que mais chama atenção, no entanto, é a ciência que, nos bastidores dessa experiência tão sofrida quanto provocadora, está uma mulher de peito aberto, disposta a incomodar e levantar assuntos que, na grande maioria das vezes, são empurrados para debaixo do tapete. É por esse desprendimento que essa voz se faz ampliada, alcançando leituras e interpretações que talvez, em outros contextos, se vissem diminuídas ou mesmo ignoradas. Pode não ser perfeito, e com certeza controverso, mas a disposição para o debate é o que termina por justificar sua valia.
Filme visto em agosto de 2023, durante o 51º Festival de Cinema de Gramado
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