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Sinopse

O Bastardo se passa no século 18, na Dinamarca. Nele, o o Capitão Ludvig Kahlen - um herói de guerra orgulhoso, mas empobrecido - embarca em uma missão para domar uma vasta terra inóspita na qual aparentemente nada pode crescer. Ele busca cultivar colheitas, construir uma colônia em nome do Rei e conquistar um título nobre para si mesmo. Essa área bela, porém hostil, também está sob o domínio do impiedoso Frederik De Schinkel, um nobre vaidoso que percebe a ameaça que Kahlen representa para seu poder.

Crítica

O Bastardo é um drama austero baseado em fatos históricos com, ao menos, um elemento que provavelmente faria brilhar os olhos do cineasta alemão Werner Herzog. O protagonista é Ludvig Kahlen (Mads Mikkelsen), militar disposto a domar um território geográfico desafiador em nome do rei da Dinamarca no século 18. Na região conhecida como Jutlândia, o solo arenoso e as improbabilidades do cultivo agrícola oferecem condições altamente improváveis para a instauração de uma nova colônia – um dos grandes desejos do monarca dinamarquês. O capitão decide custear a expedição do próprio bolso, pedindo em troca apenas a concessão de um título de nobreza e a sua parcela dos lucros da terra desolada. Seguindo com a hipótese inicial, o que provavelmente excitaria Herzog nessa trama é justamente a ideia do homem obcecado lutando contra a hostilidade de uma natureza dura e teimosa. Nos filmes do alemão, são frequentes os personagens levados a cometer sandices na tentativa de domar o indomável, de transpor o intransponível e de apaziguar uma paisagem fadada à guerra. No entanto, o cineasta Nikolaj Arcel não está tão interessado pela ideia do indivíduo dobrando a natureza, ainda que apresente cenas suficientemente dramáticas nesse sentido a fim de captarmos a essência do personagem principal. O sujeito que enverga, mas está decidido a não quebrar, é o símbolo da determinação.

O sempre competente ator Mads Mikkelsen compõe Ludvig como um sujeito introspectivo e profundamente magoado. Ao investigar a origem dessa melancolia encontramos o segundo obstáculo (o primeiro é a natureza) que ele precisa transpor: a origem renegada. O protagonista é um sujeito em busca da posição social privilegiada. Filho da servente constantemente abusada por um senhor de terras que nunca reconheceu a sua paternidade, Ludvig seguiu carreira militar (uma das únicas formas de ter alguma ascensão, dada à sua origem humilde) e decide converter a Jutlândia num campo verdejante se isso garantir a ele um título nobre e respeitabilidade. Portanto, enxergamos o indivíduo como alguém de brios feridos, disposto a fazer o que ninguém se atreveu se isso garantir uma espécie de reparação. Assim, o seu envolvimento às escondidas com Edel Helene (Kristine Kujath Thorp), a noiva prometida do latifundiário logo transformado em inimigo mortal, é menos amoroso do que pragmático. Aliás, nesse sentido é uma via de mão dupla, pois a mulher também encontra nesse recém-chegado uma alternativa ao casamento arranjado com o lunático de comportamento monstruoso, o delirante e perverso Frederik De Schinkel (Simon Bennebjerg). O amor desprovido de segundas intenções aparecerá na vida do forasteiro apenas adiante, ocasionado pelo surgimento das duas outras figuras desamparadas.

Filmado com sobriedade, O Bastardo é uma produção que avança vagarosamente, o tipo de história que confere tempo suficiente para o espectador se afeiçoar aos personagens, não necessariamente utilizando atitudes heroicas como estratégia de convencimento. Ludvig é um personagem hermético, quase impenetrável, apenas pontualmente deslocado de seu centro de conforto pelas demonstrações de bondade/maldade humanas. Decidido a fazer brotar uma plantação de batatas na Jutlândia, ele aceita os sacrifícios necessários, incluindo abandonar as únicas pessoas com as quais estava formando uma família. Nessa terra encarada pelo rei como um capricho expansionista, impera a lei do mais forte, a de quem pode mais, chora menos. Nikolaj Arcel desenha o fim de mundo obscurantista a partir do quanto certas atitudes atingem o protagonista. Ludvig é levado a perceber que nem somente de títulos vive o homem. O roteiro de Nikolaj Arcel e Anders Thomas Jensen observa o flagelo alheio a partir do quanto ele reverbera no protagonista. Por exemplo, ao mostrar a separação da pequena Anmai Mus (Melina Hagberg), não foca necessariamente no sofrimento da menina, mas no semblante melancólico do homem obrigado a lidar com a feiura materializada no comportamento racista tanto de nobres opressores quanto de camponeses oprimidos. As expressões de Ludvig denotam o peso.

Desse modo, O Bastardo defende a ideia romântica de que apenas o amor e a fraternidade podem (e devem) servir de antídotos aos vícios entranhados nessa terra supostamente fadada ao abandono e, quando muito, a ser dirigida por homens inescrupulosos. Retomando as rédeas dos bons caminhos de sua carreira após o muito contestado projeto internacional A Torre Negra (2017), Nikolaj Arcel se cerca de colaboradores talentosos para mostrar os embates entre luzes e sombras, às vezes as confundindo no comportamento dos mocinhos e dos vilões. Somente Frederik De Schinkel é filho do maniqueísmo, o representante de um mal absoluto incapaz de gestos bondosos sem ao menos diversas intenções escondidas. Os demais personagens estão à mercê das contingências, ora apresentando condutas louváveis, ora divergindo do caminho positivo por pura necessidade de sobrevivência. E Mads Mikkelsen se encaixa como uma luva na pele de Ludvig, personagem cuja emoção rarefeita se transforma num sintoma da couraça que ele foi obrigado a criar ao longo dos anos para suportar o desdém dos poderosos e a falta de quem lhe desse um pouco de carinho. O protagonista é um homem forjado nas fornalhas desse mundo violento, mas salvo pelo surgimento inesperado do amor saído dos escombros. A ideia sentimentalista do afeto como contraveneno às vezes é romântica demais, porém alivia as dores.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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