Crítica
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Sinopse
Stan é um homem de passado nebuloso que encontra ocupação e companhia junto a outros marginalizados numa feira de variedades. Em meio à exploração da miséria e da credulidade humanas, ele vai ascender utilizando artimanhas muito mais nefastas do que simplesmente enganar o público para parecer um mentalista famoso.
Crítica
O cinema já teve alguns filmes com situações grotescas acontecendo em feiras de variedades. Dois grandes exemplos paradigmáticos dessa abordagem são O Gabinete do Dr. Caligari (1920) e O Homem Elefante (1980). Em ambas as histórias temos uma coleção de espetáculos muito semelhantes, vários deles baseados no exotismo e na exploração da miséria humana. Esse tipo de atração itinerante que lembra ora um circo, ora um parque de diversões também serviu de casa para o próprio cinema quando ele engatinhava como forma de expressão, quando sequer passava pela cabeça dos empresários torna-lo uma experiência sedentarizada. O livro O Beco do Pesadelo, de William Lindsay Gresham, se passa exatamente num desses shows repletos de “números espetaculares” feitos por pessoas que já tiveram dias melhores. E a primeira adaptação da história aos cinemas, O Beco das Almas Perdidas (1947), trazia Tyrone Power como o jovem enigmático e movido por uma ambição desmedida. O protagonista ascendia com velocidade preocupante do fosso de gente derrotada às manchetes jornalísticas em que era saudado como um mentalista fora de série. Verdade, mentira e truque andavam de mãos dadas num filme de fotografia preto e branca bastante adequada para desenhar essa trama com toques noir que envolvia a corrupção humana num ambiente nebuloso entre clarividências, sina e mentiras. Na nova versão, sai a oposição entre os claros e escuros e sobressai uma efusão de cores e texturas.
O cineasta mexicano Guillermo del Toro resolveu fazer um remake de O Beco das Almas Perdidas – embora ressalte que seu filme é uma nova adaptação do livro, o que não deixa de ser verdade. E as mudanças em relação do longa-metragem considerado quase maldito nos anos 1940 começam na cena inicial. Del Toro parte do fogo pirotécnico torrando um cadáver e do crescendo das labaredas até a destruição da casa então deixada para trás por Stan (Bradley Cooper). A perguntas implícitas “quem era o(a) morto(a)? e qual a relação com o protagonista?” simplesmente inexistiam na produção dos anos 1940, pois o personagem vivido naquela época por Tyrone Power começava a trama já integrado à feira como um mero trabalhador braçal. Portanto, não tínhamos qualquer noção de sua história pregressa. Mas, Del Toro parece disposto a mergulhar na personalidade do sujeito e, sobretudo, a revelar porquês e senões. Antes, Stan apenas tomava atitudes movido pelo desejo de ocupar um lugar quase obsoleto de destaque (já que truques de adivinhação logo perderiam sua efetividade como entretenimento). Na nova versão, há uma camada de psicologismo no diagnóstico oferecido ao espectador. E essa camada nem é tão importante. No fim das contas, ela somente ajuda a explicar melhor certas motivações e afins. Entre uma e outra versão há bem mais distâncias, sendo a principal delas o fato da dos anos 1940 privilegiar as sugestões e esta reimaginação se comprometer exatamente com as explicações.
O Beco das Almas Perdidas é um drama com toques de noir; O Beco do Pesadelo é uma fábula burlesca que pontualmente faz empréstimos ao horror. O tom de fábula poderia amplificar os elementos de uma trama feita de enganações, ascensões e quedas vertiginosas, mas acaba servindo de atenuante. Del Toro imagina uma feira de variedades suntuosa, com direito a carrossel (no qual acontece uma melosa cena de beijo) e atrações gigantescas que destoam da premissa de decadência. Um dos acertos da conturbada produção anterior, dirigida por Edmund Goulding, era situar homens e mulheres entre a plena ciência de sua derrocada e a tentativa de manter a ilusão de grandeza. Havia melancolia pairando no ar. Dessa vez, o local é repleto de alegorias e atrações lindíssimas. E um exemplo de como esse desenho de produção afeta as construções dramáticas é a cena de Stan indo atrás do Selvagem – pessoa que vive em condições sub-humanas e que tem a sua miséria explorada num show grotesco. De um lado, alguém no fundo do poço, quase desumanizado; do outro, um sujeito que está tentando recomeçar. O cenário é belíssimo, com uma caveira que sintomaticamente serve de entrada e saída da sala onde ambos se encontram. A exuberância do cenário enfraquece a dominante emocional, pois a atenção é deslocada à pomposidade do espaço enquanto dramas humanos são minimizados.
Há elementos que simplesmente não servem para muita coisa em O Beco do Pesadelo. A suposta ambiguidade moral de Stan não acrescenta à sua trajetória – por que ele é reiteradamente visto demonstrando empatia pelo Selvagem? E os coadjuvantes acabam sendo despersonalizados pela tentativa de roteiro de transforma-los em figuras capazes de oferecer os caminhos das pedras ao protagonista. E existem três cenas indicativas disso. Na primeira delas, Clem (Willem Dafoe) explica a Stan como alguém desce tanto ao ponto de se transformar num Selvagem e arremata com as artimanhas para conseguir que uma pessoa caia nesse tão fundo em troca de dinheiro. Na segunda, o próprio Clem ressalta as diferenças entre metanol e álcool para consumo humano. E não fosse o viés explicativo, as cenas ainda assim possuiriam uma escancarada função de antecipação, do tipo “prestem atenção, pois essas duas lições vão ser importantes para algo”. Por fim, a terceira cena sintomática dessa transformação de coadjuvantes em meros alertas é Pete (David Strathairn) explicando os detalhes do código que permite a ele e à Madame Zeena (Toni Collette) “adivinharem”. Nesses três momentos, Del Toro é paternalista, pois sabota o poder da sugestão em prol de elucidação que evitaria desorientar a plateia. Mas, oras, é justamente das doses estratégicas de desorientação, do não saber distinguir pontualmente entre verdades e crenças, de onde o filme dos anos 1940 retira grande parte da sua potência.
A guinada de Del Toro pelo explícito também está presente na construção da imagem. Evitando novamente as sugestões, ele banaliza a figura do Selvagem (personagem que não aparece fisicamente em O Beco das Almas Perdidas) e faz algo bem parecido com a violência. Não basta mostrar alguém sendo atropelado, pois segundo essa pegada mais direta e gráfica é preciso abrir os olhos da plateia e submetê-la à brutalização meio gratuita do corpo; não basta o estampido e o sangue no rosto para mostrar a orelha atingida por um tiro, pois o cineasta acredita ser necessário um plano-detalhe da orelha deformada pela bala. E nenhum problema com essa violência mais visível, desde que ela esteja atrelada a impacto dramático das cenas e não soe tanto como uma tentativa de compensar a fragilidade dramática. Conhecido por sua sensibilidade, Guillermo del Toro transfere ao visual exuberante a tarefa de nos engajar. Ele pesa a mão nos cenários grandiosos, nos feixes artificiais de luz que banham personagens e, principalmente, ao desenhar uma miserabilidade “cosmetizada”. Falta sujeira, decadência e indeterminação. Sobra limpeza, opulência e ênfase. Cate Blanchett vive uma típica femme fatale cuja atitude é exemplar da afetação que caracteriza o filme, vide a força que ela faz para parecer perigosa o suficiente. Mas, o elenco que conta ainda com Richard Jenkins, Rooney Mara e Ron Perlman tem desempenhos adequados à proposta estético-narrativa que faz do grotesco uma atração de butique.
Filme visto durante o 23º Festival do Rio, em dezembro de 2021.
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