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Sinopse

Arandir é um homem que, num gesto banal, atende ao pedido de um beijo na boca feito por um sujeito prestes a morrer após ser atropelado na avenida Presidentes Vargas. O ato é testemunhado por Amado, um repórter sensacionalista que passa a explorar o beijo entre dois homens para vender jornal, além de incitar a polícia a investigar uma suposta ligação entre Arandir e o morto.

Crítica

Fazendo sua estreia na direção de longas, o ator Murilo Benício opta por um caminho arrojado ao retrabalhar uma obra clássica de um dos autores mais adaptados em todos os tempos pelo cinema nacional. Em O Beijo no Asfalto, Benício retorna à polêmica peça homônima de Nelson Rodrigues – já levada para as telas em outras duas ocasiões: O Beijo (1964), de Flávio Tambellini, e O Beijo no Asfalto (1981), de Bruno Barreto – evitando a saída comum da modernização temporal, mantendo a ambientação de época da ação, o Rio de Janeiro do final da década de 1950, porém, buscando a diferenciação em sua forma, algo que se dá através da pluralidade de linguagens narrativas. Assim, o cineasta estreante mescla o registro cinematográfico ao de uma montagem teatral, acrescentando ainda uma faceta documental, que acompanha os ensaios da peça, bem como apresenta uma mesa redonda de leitura do roteiro, composta pelo elenco principal e comandada pelo diretor de teatro Amir Haddad.

Dentro desta estrutura, o drama central se mantém intacto, trazendo a vertiginosa ruína da vida de Arandir (Lázaro Ramos) que ocorre após este conceder um último desejo a um desconhecido à beira da morte: o beijo do título. A cena, presenciada por seu sogro, Aprígio (Stênio Garcia) e registrada pelo repórter sensacionalista Amado Pinheiro (Otávio Müller), ganha repercussão na mídia, originando uma investigação policial comandada pelo delegado Cunha (Augusto Madeira) e afetando a relação do protagonista com a esposa, Selminha (Débora Falabella), e com a cunhada, Dália (Luiza Tiso). O olhar direcionado ao desenvolvimento da trama, tanto no palco quanto na encenação cinematográfica, se divide com a observação do trabalho de composição de personagens dos atores, bem como com o debate sobre a obra de Rodrigues, seus significados, implicações etc. Neste último aspecto, se sobressai a percepção da atemporalidade do retrato da sociedade brasileira feito pelo autor, desnudando seu conservadorismo enrustido.

Preconceito, manipulação da mídia e corrupção policial são temas expostos por Rodrigues e que se mantêm extremamente atuais. Pois basta trocar as manchetes de jornal e os trotes telefônicos obscenos recebidos por Selminha pelos links compartilhados através do celular e ataques feitos em mídias sociais para notar a semelhança entre os dois cenários, nos quais a distorção de fatos moldada pelo pensamento moralista acaba gerando uma comoção coletiva capaz de destruir o indivíduo. Essas observações permeiam a teia multifacetada de registros conduzida com segurança por Benício, que demonstra ainda sensibilidade para captar e extrair o melhor de determinados elementos, como o contraste entre o despojamento das leituras nos ensaios e a imersão/transformação final completa dos intérpretes em seus papéis. Algo que só valoriza o trabalho do excepcional elenco, no qual Müller pode ser considerado um destaque, criando a figura abominável do jornalista inescrupuloso e fazendo uma dupla em perfeita com sintonia com o policial igualmente desprezível vivido por Madeira.

Além de todos os nomes já citados, há ainda a presença de Fernanda Montenegro, no papel da vizinha fofoqueira que, como a própria afirma, funciona como síntese representativa da massa manipulada pela imprensa. A atriz, que interpretou Selminha na primeira montagem da peça, em 1961, contribui ainda com outras preciosas reflexões sobre o universo rodrigueano e suas figuras, além de relatos sobre o impacto da obra à época de seu lançamento, e que reforçam o paralelo traçado com a atualidade, especialmente na questão do papel do artista diante da onda de falso moralismo que aflora cada vez mais no país. Esse aspecto analítico acaba sendo deixado um pouco de lado conforme a narrativa caminha para seu desfecho dramático, algo sentido, mas compreensível dentro da proposta que Benício sustenta, ainda que seu arrojo como concepção gere um ligeiro conflito com certos aspectos da realização.

No campo estético, por exemplo, O Beijo no Asfalto se apresenta bastante formal, clássico, desde o preto e branco austero da bela fotografia de Walter Carvalho. Há também certa pudicícia em manter no extracampo algumas das passagens mais controversas, como a “espiada na cunhada no banho” ou a integralidade do interrogatório ao qual Selminha é submetida. A gravidade da trilha sonora, que acentua o tom trágico da história, também serve para, talvez, acabar abrandando parte da ironia típica do autor escondida sobre a exposição da sordidez humana, algo que as adaptações anteriores, de Tambellini e Barreto, ainda que mais convencionais, deixavam mais evidente. De qualquer forma, isso não impede que Benício entregue um trabalho de estreia consistente e feliz em sua busca por adicionar novas camadas a um material já bem conhecido. Seja em sua transposição da ficção propriamente dita como no olhar lançado sobre os bastidores do processo criativo.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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