Crítica
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Crítica
Há um caráter singelo neste projeto que parte de uma simples fotografia. A diretora Uilma Queiroz descobre o retrato de mulheres trabalhando numa represa no sertão de Pernambuco, nos anos 1980, quando a mão de obra feminina era desprezada pelo governo e pelos costumes machistas. Por isso, decide mergulhar no tema: quem foram estas operárias, muitas delas grávidas na época? Que pressões enfrentaram, e como avaliam suas conquistas? A diretora, originária da região, parte em busca de suas personagens, disposta a escutá-las e a preencher, assim, uma lacuna histórica. Ela encontra treze participantes que aceitam relembrar os fatos para as câmeras - algumas delas em posição de liderança, e outras, colaboradoras registradas no fundo da foto. Elas narram os episódios de violência doméstica e sexual, a fome que as motivou a pegar em equipamentos pesados, o medo de voltarem à miséria quando o projeto acabasse. Ironicamente, as barragens nunca serviram à comunidade, algo que provoca certa nostalgia nas protagonistas. Elas se dedicaram à construção porque precisavam do dinheiro, e porque queriam provar sua capacidade de resistir às mesmas provas que os homens. Saíram vitoriosas no plano simbólico, porém retornaram à estiagem e às dificuldades assim que a obra se encerrou.
O Bem Virá (2021) assume o caráter de pesquisa sociológica e antropológica, com todos os aspectos positivos e negativos que isso pode implicar. Por um lado, a cineasta possui evidente conhecimento a respeito da geologia, a história dos movimentos migratórios e os embates eleitoreiros, tendo reflexões profundas a trazer ao espectador. “O sertão é miserável por opção política”, defende, lembrando que a área constitui um dos semiáridos mais úmidos do mundo. “O problema não é a seca, mas a cerca que nos cerca”, afirma de modo poético. Seu principal movimento consiste em retirar do Pajeú a aparência de conformismo e fatalidade. Para ela, seria fundamental que os cidadãos conhecessem as ações de responsabilidade do governo para proteger a população nessas circunstâncias. Não é possível culpar apenas a falta de chuva, como convém a tantos candidatos e homens eleitos. O documentário visa mostrar o que pode ser feito em termos estruturais, caso superemos os preconceitos machistas e regionais relacionados ao Nordeste. A autora aproveita para disparar contra a imprensa, interessada em retratar apenas a miséria profunda do sertão quando lhe convém, reforçando um estigma desfavorável.
Por outro lado, falta destreza com a linguagem cinematográfica. Os encontros com as mulheres se mostram protocolares, rígidos, transparecendo o desconforto das entrevistadas e da própria cineasta na condução das perguntas. Em diversos casos, ela lança perguntas mais longas do que as respostas obtidas - sinal de que não pôde tomar o tempo de conhecer essas pessoas e criar alguma relação de intimidade antes de ligar a câmera. As senhoras idosas estão maquiadas, arrumadas, sentando-se eretas para uma conversa tão posada quanto estéril - na maior parte dos casos, elas se atêm aos fatos gerais, ao invés de sentimentos, sensações e anedotas que pudessem humanizar o episódio. Algumas questões são puramente retóricas: quando uma entrevistada se reconhece na foto, a diretora pergunta “A senhora se reconheceu? Está parecida?”, o que obviamente gera uma resposta inócua. No curto momento em que interagem umas com as outras, as heroínas permanecem intimidadas pelo dispositivo à frente. A montagem tenta assumir a artificialidade da câmera (quando Queiroz, em off, autoriza os pedestres a passarem em frente à câmera) mas o recurso se interrompe antes de provocar uma real descontração.
Além disso, o roteiro depende excessivamente das explicações didáticas da diretora, na função de narradora. A certa altura, ela interrompe por completo as conversas para passar cerca de dez minutos detalhando questões de história, geografia e política, algo que a imagem não dá conta de refletir por si mesma. O resultado incomoda por utilizar a matéria audiovisual enquanto mero suporte para rechear o valor sonoro das falas que, por sua vez, jamais instigam tanto quanto prometiam a princípio. Queiroz tem uma palestra de grande valor a transmitir, porém se vê em dificuldade para representá-la com as ferramentas específicas cinema. A obra constitui um caso em que o conteúdo se sobrepõe hierarquicamente à forma, limitada à função de suporte. Com o pouco material em mãos (aparentemente, cada entrevista foi registrada de uma só vez, em ângulos únicos), a montagem encontra dificuldade para estabelecer ritmo, precisando efetuar cortes internos e amadores, sequer dissociando o som da imagem para orquestrar novos sentidos a partir de sobreposições. O melhor elemento provém da captação de som direto, ainda que seu uso pudesse assumir mais riscos e ousadias.
O Bem Virá se converte numa obra sobre pessoas fortes, pioneiras e destemidas, captadas por um cinema frágil e convencional, ao limite do escolar. Os letreiros finais, de cores rosas sobre um fundo rosa, remetem às apresentações em PowerPoint. Muitos diretores se munem de um tema importantíssimo, e de discussões fundamentais, para então ilustrá-los de modo pouco elaborado, aquém da profundidade do debate. Terminamos por conhecer pouco destas mulheres para além do retrato coletivo e anônimo da luta por sobrevivência contra os maridos embriagados, contras as famílias conservadoras e os governos ineptos. Ora, este era também o ponto de partida, anunciado desde o princípio. Que fim teve a barragem? O que dizem os políticos envolvidos nesta medida paliativa de emprego à população? Como a experiência de empoderamento transformou as trabalhadoras com o fim deste plano? Sabemos que frequentavam bares, paqueravam. Isso é ótimo, mas também é pouco para compreender subjetividades distintas e complexas. O documentário termina por tratá-las como objetos de estudo, ao invés de indivíduos com voz própria, capazes de assumir o protagonismo sem tamanha intervenção pedagógica.
Filme visto online no 10º Olhar de Cinema: Festival Internacional de Curitiba, em outubro de 2021.
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