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Crítica


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Sinopse

Da paisagem oceânica, é possível recuperar histórias que, apesar de distantes em tempo cronológico, são passíveis de aproximação. Uma viagem é feita para estabelecer uma conexão entre o perturbado passado colonial do Chile e a mais recente realidade dos presos políticos da época do Pinochet – histórias ligadas por um elemento comum e arraigadas na água, elemento fundamental da vida humana.

Crítica

A água é o elemento catalisador de O Botão de Pérola, documentário dirigido por Patricio Guzmán. Misturando conjecturas filosófico-existencialistas com lembranças de sua própria infância, o chileno vai traçando vagarosamente um painel poroso, no qual são exibidas vertentes científicas, históricas e, às vezes, quase esotéricas. A imagem assume um caráter fortemente abstrato, uma vez que a câmera registra os fenômenos de ângulos inusitados, com velocidades distintas, variações que resultam na impressão de estarmos diante de uma pintura viva da metamorfose de ciclos que remontam ao início dos tempos. Essa concepção visual, responsável por transmitir o êxtase frente à natureza, sublinha o mistério que pretensamente está por trás até mesmo das ocorrências mais banais do cotidiano, expondo suas dimensões ancestrais. Guzmán, também narrador, conta coisas íntimas, como a lembrança do barulho da chuva no teto de zinco da casa familiar ou o marcante desaparecimento de um colega.

Seguindo como que o curso de um rio, O Botão de Pérola sofre a primeira guinada, um movimento orgânico que transfere o foco da água aos povos antigamente habitantes do sul do Chile. Esses nativos que viviam basicamente de acordo com os humores das correntezas, montando acampamento conforme a subida e a descida das marés, foram vítimas das missões católicas, que os descaracterizaram completamente, dos colonizadores, responsáveis em grande parte por seu extermínio, e de outras intempéries decorrentes da presença do homem branco. Nesse ponto, Guzmán deixa aflorar a tendência histórico-social de seu trabalho, já que se detém demoradamente na análise, primeiro, da relação da população original com os meios que proporcionavam subsistência, e segundo, da interferência feroz do estrangeiro, este que trouxe consigo a beligerância e o anseio por dominar civilizações consideradas bárbaras, apenas porque os costumes delas diferiam dos constatados na Europa.

O Botão de Pérola ganha mais um ponto capital nesse alinhavar de esferas sem ligação aparente a partir do solavanco que nos joga diretamente nas agruras da ditadura militar chilena, mais precisamente nos efeitos do golpe de Estado que destituiu o então presidente Salvador Allende. Guzmán fala a respeito das vítimas levadas para o território que séculos antes havia testemunhado o genocídio dos indígenas. Nessa toada, inclusive, colaboradores chegam a dramatizar os procedimentos militares de outrora à desova dos corpos daqueles que não resistiam às sessões de barbárie. É penosa a tomada que reconstitui, de forma livre, o arremesso dos cadáveres no mar, menos por seu sentido literal, mais pela potência simbólica de um gesto que encerra todo o ritual macabro demonstrado anteriormente. Nem sempre a tentativa de deflagrar a circularidade dos acontecimentos, um dos pilares da narrativa, se mostra sólida, o que entrava um pouco o percurso do filme.

Os depoimentos que Patricio Guzmán coleta são bastante interessantes, bem como a inserção deles na trama, sem ranço cerimonioso, pelo contrário, ao sabor da necessidade premente de complementar algo, seja por meio de uma opinião acadêmica ou da declaração dos descendentes ainda vivos de uma tradição ameaçada. Em O Botão de Pérola a inclinação poética vista na primeira parte cede espaço gradativamente a um olhar mais pragmático, endurecido pelos episódios nefastos da história chilena. O diretor lança mão de vários dispositivos, inclusive de uma instalação artística cujo efeito é apresentar a formação geográfica singular do Chile, esta extensão longilínea de terra açoitada pelas águas. O objetivo é tornar a abordagem plural, permitindo a convivência frutífera de âmbitos diversos em prol da unidade. Parte dessa multiplicidade se perde no momento em que as feridas dos anos de chumbo ganham os holofotes. Guzmán tenta consertar isso com lirismo, traçando uma linha reta entre o artefato sedutor ao nativo no passado e o indício de violência encontrado no presente, encaminhando, assim, sob o signo dos versos melancólicos, o encerramento desse documentário em que as inconsistências se apequenam diante das qualidades.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

Grade crítica

CríticoNota
Marcelo Müller
7
Chico Fireman
1
MÉDIA
4

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