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Crítica


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Sinopse

Uma viagem pela história moderna das nossas sociedades. Riqueza e poder de um lado; progresso social e desigualdades do outro. Referências da cultura pop se mesclando com intervenções de figuras influentes.

Crítica

O documentário decorre de um processo de criação bastante transparente. O diretor Justin Pemberton parte do livro do economista Thomas Piketty para analisar de que maneira transformamos e somos transformados pelo capitalismo na pós-modernidade. Para levar ao cinema uma discussão ampla sobre o tema, o cineasta se cerca dos maiores pesquisadores do mundo em economia política e história das organizações, a exemplo de Kate Williams, Rana Foroohar, Francis Fukuyama e Suresh Naidu. Eles abordam de modo compreensível (uma vantagem de se conversar com professores universitários) as principais transformações mundiais dos últimos três séculos, culminando na forma como enxergamos o poder e a propriedade atualmente. Nada escapa a este panorama generoso: a evolução do mercado de trabalho, as divisões sociais por gênero e raça, o impacto das grandes guerras, a inflação, a mais-valia, o papel dos sindicatos, a desigualdade de renda, o impacto da tecnologia etc. Enquanto porta de entrada a um tema complexo, o projeto cumpre bem o seu papel.

Uma vez coletadas as entrevistas, parece ter surgido uma preocupação posterior ao cineasta: com que imagens eu poderia ilustrar esta aula magna? Que material de arquivo e que filmagens próprias deveria proporcionar para se adequarem às falas dos especialistas? Neste aspecto se encontra a mais flagrante deficiência de O Capital no Século XXI (2019): o papel secundário da linguagem cinematográfica. Servindo de “acompanhamento” ao som, preenchendo humildemente a duração do longa, o conteúdo imagético não traz qualquer interesse particular em si. É triste evocar um filme cujas imagens sejam irrelevantes, ou dispensáveis, mas talvez este seja o caso do projeto que se adequaria sem grandes perdas ao formato do podcast. Para Pemberton, basta que os registros repitam o conteúdo sonoro: quando Piketty menciona Wall Street, vemos uma imagem sobre Wall Street. Quando Williams evoca a revolução industrial, deparamo-nos com ilustrações das fábricas e usinas, e quando Naidu evoca os lucros da escravidão, testemunhamos desenhos sobre escravos. Não se trata de um trabalho aprofundado de pesquisa ou de associação de imagens: o criador busca as referências mais claras possíveis aos conflitos evocados pelos professores.

Em consequência, a maioria das cenas parece extraída de algum banco de imagens genérico, com direito a múltiplos panoramas de cidades e ilhas fiscais junto a animações de cifrões, moedas e notas de dinheiro. Para a mise en scène e a montagem, o filme aposta em cenas ágeis, fragmentadas, com telas divididas, bastante música, cor e efeitos de transição. A escolha pode ser justificada pela necessidade de tornar o tema acessível ao público médio, explorando as ferramentas da juventude ultraconectada, acostumada às telas múltiplas e incapaz de se concentrar em cenas longas. Entretanto, a velocidade dos flashes torna as sequências equivalentes, e no fundo, desimportantes: nenhuma imagem se exibe por tempo suficiente antes de ser substituída pela próxima, por uma terceira, e assim por diante. Dificilmente se destacaria algum instante memorável ao longo do documentário, em termos de discurso ou sensações: a narrativa se torna previsível do começo ao fim, abraçando o mesmo ritmo de transições, e os mesmos recursos visuais. Quando se assiste a quinze minutos da projeção, compreende-se o que nos espera pelo restante da experiência. A opção pela estética da impermanência soa contraproducente: como questionar as derivas do capitalismo enquanto se reproduz, sem questionamento metalinguístico, a estética de massa fomentada por ele?

Em outras palavras, Pemberton e Piketty – este último creditado como coautor – desprezam o fato que forma implica em conteúdo. Há evidente ironia em atacar a virtualidade por um viés tão digital; em criticar o consumo através de uma sucessão vertiginosa de imagens semelhantes às opções de produtos num supermercado. Teria sido fundamental encontrar uma forma subversiva para se adequar ao livro provocador, alvo de debates profundos entre intelectuais de esquerda e de direita. A linguagem do reconforto não se adequa ao discurso ativista, ou ainda, a tentativa de imersão não favorece o distanciamento. Em consequência, não somos convidados a refletir a partir das contradições postas em cena, visto que não há nenhuma: todos os intelectuais concordam entre si, sustentam um discurso unívoco, nos dizendo exatamente o que pensar, como pensar, e quais conclusão retirar deste ensinamento. O perigo do cinema educativo se encontra na pressuposição de ignorância do espectador, e na crença de que seria preciso lhe fornecer a tese, a antítese e a síntese; ou então o conjunto completo de hipóteses, objetivos, metodologia e conclusão. A arte funciona por caminhos muito diferentes.

Mesmo a maneira como Piketty e Williams são filmados desperta curiosidade: por que posicionar o economista sob uma forte lâmpada, provocando variações de luz conforme ele se move, e sobretudo, por que colocar a professora de História diante de um halo luminoso, com fumaças saindo por trás? Eles adquirem um ar misterioso ou idealizado, pouco realista para falas tão despojadas. Pemberton não resiste à tentação de embelezar até a aparência de seus personagens. Já o discurso político acompanha a cronologia precisa de séculos e décadas, apresentando uma sucessão de reviravoltas sem questionar os motivos que levaram ao término de cada movimento. “Então veio a recessão”, “Então a crise imobiliária arruinou a bolsa de valores”, evocam os narradores. Ora, como nascem as crises, e em especial, como terminam? A abordagem de causa e efeito, compreendendo a História enquanto linearidade inevitável, transparece uma ideologia tão generosa quanto simplificadora. Não há dúvidas de que o livro e os entrevistados são capazes de destrinchar os pormenores da economia mundial. O filme, em contrapartida, foge a esta ambição, contentando-se em abraçar diversos séculos da maneira mais colorida, alegre e veloz possível. Trata-se de uma boa aula de introdução à economia moderna, porém um fraco exemplar de cinema.

Filme visto online no Festival Varilux de Cinema Francês, em dezembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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CríticoNota
Bruno Carmelo
4
Ailton Monteiro
7
MÉDIA
5.5

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