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Crítica


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Sinopse

Ana se encontra completamente encurralada. No andar de baixo, os fantasmas do passado. No piso superior, os vultos do futuro. Mas, a despeito de tudo isso, ela resiste bravamente.

Crítica

A primeira imagem, em contra-plongée, nos apresenta um prédio de tijolos cujas formas arredondadas lembram um castelo. O silêncio e o tempo de observação nos remetem ao suspense e ao terror, enquanto a escolha pelo preto e branco dilui a temporalidade. Estamos no presente, mas sem referências óbvias à contemporaneidade conectada (nada de telefones celulares e redes sociais, por exemplo). As ações mencionadas pelos personagens (chacinas do Rio de Janeiro, tiroteios, violência policial) poderiam ter ocorrido nas décadas passadas, visto que perduram há tempos. Ana (Liliane Rovaris) constitui uma personagem moderna, uma mulher independente e segura de si, porém se torna mais do que uma professora de teatro e atriz: a protagonista se encontra no cruzamento entre os fantasmas da ditadura militar e as formas mais recentes de agressão urbana. Um conflito de gerações atravessa esta mulher distante tanto da filha pequena, que passa mais dias junto ao pai, quanto dos fantasmas familiares, exilados devido à perseguição dos militares.

Os diretores Aurélio Aragão, Gustavo Bragança e Rafael Spínola trabalham de forma curiosa com o cinema de gênero. Eles se apropriam de símbolos clássicos das fábulas (a donzela presa no castelo) e elementos típicos do suspense (a invasão da casa por desconhecidos) para frustrar a tensão e a concretização do caos. Diversos personagens sangram nesta história, mas nenhum deles é Ana, que jamais se rende à posição de vítima. Não se trata de uma figura forte e combativa, apenas uma mulher inerte, que se recusa a perceber a fragilidade da casa onde mora, preferindo empurrar a vida como a conhece. Por isso, sustenta uma relação de desinteresse com o teatro, com o ex-marido e com os espaços ao redor. A heroína nem acolhe, nem combate as intromissões em sua intimidade. O Cerco (2020) funciona enquanto bela metáfora de um Brasil catatônico, sofrendo opressões por todos os lados - os amantes da opressão batem à porta, porém não nos rebelamos por completo. Tentamos manter a rotina, porque revoluções exigem um investimento pulsional de que não dispomos nesse momento. Além disso, as instituições estão funcionando normalmente, certo?

Os cineastas elaboram uma noção voluntariamente confusa dos espaços. Teria sido muito simples acompanhar a professora num plano-sequência, da porta de casa até os fundos, revelando ao espectador a configuração exata do edifício. No entanto, a casa-castelo, ou ainda a prisão-fortaleza, torna-se uma colagem de peças que não necessariamente formam um quadro completo. A porta de entrada, o acesso via garagem, os corredores laterais, a cozinha, as escadas em espiral e a parte superior com a piscina integram o cenário de modo apenas sugerido. Não se entende bem por onde entram as crianças vizinhas, os herdeiros do passado militar, nem outras figuras que ocupam a casa apesar de Ana. A falta de controle sobre a casa equivale a uma falta de controle sobre si própria: Ana é invadida, percebida como “desconfortável” por um aluno, “chata” pelas crianças ao redor, como ausente pelo ex-marido. A ocupação dos espaços ocorre de maneira fluida em termos narrativos, porém conflituosa na construção das imagens. Ana jamais demonstra carinho pela casa – nunca a vemos dormindo, se alimentando, aproveitando o ócio. Este imóvel “muito importante”, pois herdado do pai, representa tanto um privilégio quanto um fardo.

Em contrapartida, O Cerco se beneficiaria de um trabalho mais preciso de direção de fotografia e de som. Durante uma conversa na cozinha, a câmera treme excessivamente, hesita entre enquadrar o rosto de um ou de outro. Exceto pelas provocações das crianças sobre o colchão, as demais brincadeiras no escuro se dispersam demais, mesmo quando incluem símbolos fundamentais à trama, a exemplo do gravador. A predileção por filmar personagens de costas, e jamais se aproximar do rosto das crianças nem dos “hóspedes”, leva a alguns diálogos pouco compreensíveis, sobretudo nos palcos onde se encena Eu, o Romeu e a Julieta. Dentro da cozinha, a captação de som é bastante prejudicada, e rumo ao final, uma cena com fogos de artifício não sustenta a luz durante tempo suficiente para confirmar a frase escrita na parede. Seria “Eu não tenho medo de viver?”. (Em paralelo, o uso dos fogos de artifício ao final e as invasões sucessivas na mesma casa soam como referências diretas a O Som ao Redor, 2012). Apesar destas questões, o filme traz momentos de interessante concepção sonora, como a conversa pós-apresentação de Ana, quando o áudio a respeito da ditadura se mescla ao diálogo in loco e à melodia da Sonata de Outono.

Já o roteiro demora a definir seus objetivos. Devido à montagem paralela inicial, não sabemos quem seria o personagem principal (Ana ou as crianças?), nem por qual ponto de vista a história seria contada. Observamos a opressão simbólica pelos olhos da professora, dos invasores ou de nenhum dos dois, permanecendo num ponto externo? A dúvida se esclarece aos poucos. A incerteza se estende ao uso da gradação: os diretores pretendem que as aparições cresçam até a explosão, ou sejam frustradas pela ausência de tensão? O filme possui caminhos vacilantes, rompendo com a linearidade de algumas ações e com as relações de causa e consequência (vide as elipses após a descoberta no armário e o contato com os “meliantes”). No entanto, enquanto desenho de uma ambientação mais psicológica do que fatual, os cineastas atingem um resultado memorável. Ao final, importa menos o desfecho de cada conflito do que o perigo iminente, invisível e sem autor preciso. Há um poder maior que envolve o Estado, a polícia e outras forças institucionais, provocando a decadência da casa e a fragilidade de Ana. Mesmo sem entregar a explosão prometida (exceto pelos fogos caseiros, quem sabe), os criadores desenvolvem o conflito sem conclui-lo, mantendo o grito preso à garganta.

Filme visto online na 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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