![](https://www.papodecinema.com.br/wp-content/themes/papodecinema/images/frontend/sem-imagem.png)
O Céu Sobre os Ombros
Crítica
Leitores
Sinopse
A narrativa acompanha alguns dias da vida de três personagens: Everlyn é uma transexual que fez mestrado sobre os diários de um hermafrodita do século XIX e vive entre a prostituição e os cursos de sexualidade que ministra como professora. Murari é um devoto da religião Hare Krishna e do time de futebol do Atlético Mineiro, líder de torcida organizada. Lwei é africano descendente de portugueses e escreve vários livros ao mesmo tempo, sem nunca ter chegado à conclusão de nenhum. Apesar de não se conhecerem, vivem na mesma cidade, se relacionam com a escrita, tem cerca de 30 anos e famílias distantes. Eles não se encontram no filme, mas constantemente seus desejos e seus medos se cruzam, se interpenetram e criam uma rede de perguntas e respostas, de posicionamentos distintos e afins.
Crítica
A câmera de O céu sobre os ombros é um olho aberto para a quantidade inumerável de vidas dispostas nas intermináveis residências de um plano aberto na cidade de Belo Horizonte. Isolada pelo concreto dos apartamentos, as existências se disfarçam. Isso se um diretor estreante, digamos Sérgio Borges, não enxergar na peculiaridade isolada de três indivíduos material rico para transformá-la em um documentário ficcional.
Murari trabalha em um restaurante, faz parte da torcida organizada do Atlético Mineiro e pratica a religião Hare Krishna. Lwei é um angolano, escritor de livros marginais que retratam o submundo da vida na capital mineira. Everlyn é uma transexual que faz mestrado na Universidade Federal de Minas Gerais e ensaia as primeiras linhas de uma carreira literária. Como se pode perceber, os três personagens são muito mais do que aparentam. Mais do que pessoas à margem compulsória ou voluntariamente, estes indivíduos-personagens ali estão por necessidade e urgência, pois qualquer outra forma sob a qual se apresentassem significaria evitar que se mostrassem como realmente sentem que são.
Frente ao rico material humano encontrado, Borges acumula uma série de acertos no encaminhamento do projeto. O principal se fez ao não apresentar o trio como párias ou isolados, em desconexão com o mundo. Mrari, Lwei e Everlyn não são mais solitários do que qualquer um de nós, seus espectadores. Como pessoas comuns, Lwei se junta aos amigos em uma mesa de bar, enquanto Murari acompanha os jogos do Atlético Mineiro e Everlyn ajuda um colega na montagem de um projeto acadêmico. O enfoque posto pelo diretor está no questionamento tácito e na observação de como estes personagens conseguem lidar com a força de contrastes presentes em seus interiores. A sociedade moderna, com seus vícios e virtudes, surge ambiguamente como espaço de isolamento e de projeção, uma vez que permite ao trio tanto o recolhimento quanto a atuação. Frio e distante, o espaço público é o mesmo que permite a oportunidade do emprego, estudo e entretenimento conjuntamente à superação dos preconceitos originados a partir da ótica tradicional. Outro acerto, agora do roteiro de Sérgio Borges e Manuela Dias (Transeuntes, Erik Rocha, 2010, e Deserto Feliz, Paulo Caldas, 2007), se apresenta na decisão de não sucumbir à tentação do encontro físico dos personagens, recurso muito presente – e em parte desgastado - quando se trabalha com mais de um protagonista. Ao evitar a opção, o filme foi resguardado de um artificialismo que rebaixaria a individualidade dos personagens a um momento de obviedade. Em nenhum momento se fez necessário interligar direta e visualmente as três vidas para que saibamos sê-las naturalmente concomitantes.
Em busca de sublinhar os momentos centrais de cada personagem, a fotografia de Ivo Lopes Araújo (O Grão, Petrus Cariry, 2007) e a edição de Ricardo Pretti (Estrada para Ythaca, Pedro Diogenes, Guto Parente, Luiz e Ricardo Pretti, 2010) se conjugam nas cenas de cortes bruscos e encadeamento duro, compondo, assim, uma estética admirável, marcada pela rigidez, frieza e distanciamento. Qualquer insinuação contrária, no caminho da afetividade, traria um prejuízo ao sugerir aos espectadores uma relação de piedade e benevolência quanto ao estado dos personagens e não despertaria a admiração probatória diante das posturas encontradas. O distanciamento, essencial para evitar julgamentos apressados, permite ao público a possibilidade de conhecer aqueles que nos são apresentados, condição para todo e qualquer juízo de valor.
Conhecidos ou desconhecidos, carregar o céu sobre os ombros, tal qual a sugestão do título, unifica a todos. Assim como grandes desafios exigem grandes responsabilidades, apenas os terrenos acidentados refletem a dimensão das realizações nas planícies. Para os que apenas estão despercebidos da dimensão do próprio acontecimento, os que buscam algo além talvez vivam pelos dois.
Últimos artigos deWillian Silveira (Ver Tudo)
- Banco Imobiliário - 4 de agosto de 2020
- Tropykaos - 30 de março de 2018
- Os Golfinhos Vão Para o Leste - 24 de novembro de 2017
Deixe um comentário