Sinopse
Crítica
O título brasileiro deste filme sugere vagamente a centralização em alguém. Porém, a trama não é apenas a respeito de um chef de cozinha e suas agruras. Ela acontece num restaurante observado como uma espécie de microcosmo da sociedade atual. Assim, o conjunto é o protagonista. O título original, Boiling Point (ponto de ebulição, em tradução livre), é bem mais condizente com essa proposta, principalmente se for traduzido como “ponto de fervura”, o que indica o instante em que certas matérias mudam de estado. Sim, pois o cenário é atravessado por crises sucessivas e relativamente corriqueiras na noite de Natal, logo se assemelhando a uma panela de pressão prestes a estourar. Nesse panorama, Andy (Stephen Graham) é o fio condutor, aquele que nos confere acesso à sucessão angustiante de conflitos durante o expediente de seu concorrido restaurante. Ele é um homem fraturado, explosivo em determinados momentos, mas humano o suficiente para reparar com ternura os eventuais danos causados aos subalternos nos quais desconta. Stephen Graham empresta ambiguidade a esse homem em vias de explodir, mas que faz de tudo para as adversidades não influenciarem negativamente o serviço oferecido aos clientes. Ao seu redor, vários coadjuvantes que assumem posturas distintas nessa história fotografada num belíssimo (e inquieto) plano-sequência. O filme não possui cortes. É uma jornada contínua noite adentro, opção radical que interfere de modo fundamental na nossa experiência.
Seria mera especulação ficar aqui imaginando como O Chef aconteceria sem o plano-sequência. Perderia em tensão com uma montagem "convencional", mas que pudesse trabalhar ainda mais certos pontos de pressão? Um jogo de dilatação ou supressão temporal aumentaria a sensação de que as coisas estão prestes a colapsar no ambiente que precisa carregar uma aparência sóbria a fim de não incomodar os clientes que pagam caro para frequenta-lo? Conjecturas à parte, o plano-sequência confere um viés de urgência ao filme. E isso é muito bem construído pela fotografia a cargo de Matthew Lewis. A câmera se transforma num dispositivo curioso e com acesso privilegiado aos bastidores, transitando livremente pelas conversas que não chegam ao salão, sempre em busca de algo a ser testemunhado. Aliás, o interesse mantido em alta voltagem é um dos grandes acertos dessa estrutura, pois de fato o cineasta Philip Barantini faz com que suas lentes se comportem como imãs. Elas são atraídas pelas possibilidades de flagrar comportamentos e diálogos indicativos das dinâmicas que transcendem os limites das paredes. A trama não prevê apenas um retrato dos homens e mulheres que labutam arduamente para os pedidos saírem quase perfeitos, mas também o que representa a fauna burguesa que frequenta o lugar. Entre clientes se vê um pouco de tudo, de racistas a influenciadores toscos.
Em meio à movimentação incessante da câmera que, para capturar tudo, se recusa a piscar – de certo modo, esse é o efeito sugerido pelo plano-sequência –, o salão onde ficam as mesas se transforma num painel social. Enquanto Andy luta contra demônios pessoais parcialmente revelados e a sua equipe se vira dentro da realidade que nem de longe contempla circunstâncias ideais, o vai-e-vem de garçons e as garçonetes nos apresenta os clientes. Numa das mesas, um homem é cordial com a atendente branca, mas se torna absolutamente grosseiro quando servido por uma mulher negra. Ele chega a questionar veemente e pejorativamente: “a sua gente não foi ensinada como deixar um vinho respirar?”. Em outro recanto, sujeitos de atitude ridícula reivindicam privilégios por serem subcelebridades com um pouco mais de 30 mil seguidores no Instagram. A subserviência da gerente do salão (filha de um dos donos) ao aceitar o pedido especial (fora do menu) depois de ser interpelada de maneira passivo-agressiva por pseudocelebridades é, ao mesmo tempo, sugestiva da realidade "instagramável" e mola propulsora dos conflitos com a cozinha amplamente pressionada. O filme prepara e posteriormente costura muito bem os embates e as divergências acumulados ao ponto de manterem as situações em contínuo ponto de ebulição. O grande segredo desse molho é a tensão ser dosada com particular habilidade.
Às vezes a câmera se demora em escapadas convenientes – como quando o ajudante de cozinha busca brevemente cocaína no exterior ou na ligação chorosa da herdeira. Podemos imaginar (olha a conjectura de novo) que são pequenos respiros para a equipe ganhar segundos valiosos de reorganização no cenário. O plano-sequência prevê desafios quase impeditivos, pois a sua coreografia precisa contemplar a destreza pelo espaço e ainda garantir a manutenção do ritmo. Ao vencer os desafios técnicos dessas magnitudes, Philip Barantini transforma a opção narrativa numa aliada poderosa, nunca deixando-a parecer um mero fetiche satisfeito por vaidade. Embora não seja um exemplar de personagens, já que o painel é o mais importante, não exatamente as individualidades, Stephen Graham se destaca como o homem que simboliza a ameaça de rompimento por conta das pressões acumuladas. Aos poucos, ganhamos acessos por meio desse sujeito que enfrenta problemas familiares, financeiros e que está tentando se reerguer a despeito do uso desenfreado de álcool e drogas (substâncias que supostamente o ajudam a aguentar a pressão). Nesse pequeno mundo em que subcelebridades exercem influência negativa e a passivo-agressividade disputa terreno com a gentileza e a hostilidade escancaradas, o longa-metragem (baseado num curta) se torna uma experiência estimulante de ponto de vista cinematográfico, um programa em que tensão e fragilidades humanas são orgânicas e vitais.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Marcelo Müller | 8 |
Alysson Oliveira | 8 |
Francisco Carbone | 8 |
Chico Fireman | 6 |
Leonardo Ribeiro | 7 |
MÉDIA | 7.4 |
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