Crítica
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Sinopse
Crítica
Após uma breve apresentação do personagem principal, o agricultor Hasan (Umut Karadag), a narrativa introduz um grande conflito ao homem de meia-idade: a intenção do governo em construir torres de energia elétrica passando por suas terras, o que destruiria os plantios de tomate e maçã fundamentais ao sustento da família. Caso seguisse por um caminho clássico, o filme faria deste problema o principal motor da história: o sujeito combatendo o poder do Estado composto por funcionários insensíveis. Este seria um drama clássico a respeito do modo de vida natural e ancestral contra o mundo acelerado das novas tecnologias, o indivíduo contra o sistema, o pensamento coletivo contra a ganância. Os quinze minutos iniciais despertam essa impressão, quando Hasan se converte no pobre e educado agricultor que discursa gentilmente face a seus opressores, solicitando um pouco de compreensão - afinal, um terreno improdutivo encontra-se logo ao lado. Por que não podem deslocar o trajeto da rede elétrica em 60 ou 70 metros? A aparência inicial do protagonista reforça sua resiliência, conferindo em paralelo o aspecto piedoso e ingênuo. O agricultor inicia seu percurso na condição de vítima.
Ora, a ficção de 147 minutos de duração possui objetivos mais amplos e complexos do que o enfrentamento de Davi e Golias. Passadas algumas reuniões, o imbróglio das torres se resolve. No entanto, o espectador começa a descobrir um herói diferente, um tanto manipulador, disposto a mentir para aumentar sua margem de lucros, esconder informações essenciais da esposa, chantagear e prejudicar seus desafetos. O proprietário de terras jamais se revela um vilão, apenas um sujeito propenso às pequenas corrupções diárias, os minúsculos arranjos do poder, que vão do suborno de fiscais à negociação antiética. Percebemos que ele sabe usar as suas cartas, assim como a esposa. O espectador permanecerá ao seu lado ao descobrir o caráter menos elogioso? Deixará de aderir à luta contra a prefeitura, devido aos planos nada amigáveis de transferência do problema ao território alheio? Em outras palavras, a partir de que ponto o ser oprimido se converte em opressor? Quando as ilegalidades do indivíduo traduzem as fissuras de um mecanismo geral de manutenção do poder?
Cena após cena, a trama se aprofunda em dilemas morais, éticos e psicológicos. Em postura externa e onisciente, o público testemunha as ações de longe, percebendo aos poucos do que são capazes estes indivíduos, e suas reais intenções por trás de planos suspeitos. O diretor Semih Kaplanoğlu permite que assistamos a inúmeros conflitos em paralelo, testemunhando segredos de um e de outro, mas nunca acessando por completo as suas ações. Até a sequência final, haverá surpresas a respeito do trajeto de Hasan e Emine (Filiz Bozok). Ambos atores estão excepcionais na transição entre alvos da exploração do governo e exploradores, por sua vez, dos funcionários e artesãos ao redor. A premissa da peregrinação religiosa constitui o motor ideal para o roteiro transformar o drama numa sucessão de embates entre ricos e pobres, homens e mulheres, patrões e empregados. O dinheiro será o tema explícito ou implícito de cada discussão, onde margens de lucros, valores de propina e compra de silêncio são negociados à luz do dia. O cineasta transporta um mosaico amplo da Turquia contemporânea à fazenda de maçãs e tomates.
O Compromisso de Hasan mergulha estes afrontamentos numa discussão fabular, avessa ao ultrarrealismo. Na chave de um extremo formalismo autoral (não muito distante de Nuri Bilge Ceylan), Kaplanoğlu explora com cuidado as amplas planícies e terrenos, revelando o precioso trabalho de direção de fotografia, privilegiando a imagem saturada e o uso expressivo das luzes neon nas sequências noturnas e externas. A montagem intercala planos gerais, onde os humanos se fazem pequenos em meio à natureza, com planos de detalhe minuciosos da chuva sobre as maçãs no chão e as abelhas na plantação. O diretor aposta em símbolos clássicos, obtendo ora resultados de grande potência estética (as cenas de abertura e conclusão), ora se perdendo na grandiosidade do gesto (o ataque sonhado das maçãs contra o agricultor, a flutuação imaginária da árvore cortada). De qualquer modo, ele compreende a necessidade de fazer com que a natureza reflita os conflitos, para além dos diálogos e das atuações. Por isso, os ventos se tornam mais agressivos e as águas revidam os ataques do protagonista - o ambiente reflete a agressão humana.
Enquanto isso, o diretor valoriza olhares, desejos e rancores. A narrativa conta com pelo menos uma dúzia de cenas preciosas, quando a aparente bondade humana revela um lado ambíguo, menos idealizado. O pedido de bênção ao sapateiro dispensa qualquer gentileza no plano final; a imagem do funcionário da prefeitura chegando à casa do juiz, num plano de detalhe pelo retrovisor do carro, deixa entender os laços entre poderosos, e a troca de olhares entre Emine e a empregada doméstica, durante a negociação de um produto artesanal, expõe fissuras numa relação de cumplicidade. O excelente texto possui a capacidade de incorporar sutilezas, longe de maniqueísmos e julgamentos morais. A patroa que explora a artesã também se revela gentil com a funcionária (seria por culpa?), antes de agir contra o marido numa transação financeira e ajudar as pessoas ao redor. Os ricos personagens refletem diferentes esferas do capitalismo contemporâneo, aliado à hipocrisia religiosa - uma vez efetuada a peregrinação a Meca, eles terão seus pecados perdoados. “Você tem algo de que precise se desculpar?”, pergunta o marido à esposa na fase de preparativos à viagem. “Não, nada”, ela responde. Os dois permanecem em silêncio. Sabemos que se trata de uma mentira, e eles também sabem. E segue a vida.
Filme visto online na 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2021.
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