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A premissa de O Conde é maravilhosa: reimaginar o ditador chileno Augusto Pinochet como um literal vampiro sugador de sangue. O cineasta Pablo Larraín havia recorrido ao horror numa de suas abordagens anteriores de figuras célebres – Spencer (2021), sobre a princesa Diana –, mas aqui dá um passo além no trabalho com as ferramentas do gênero. No longa-metragem que supunha em termos ficcionais o que teria acontecido num fim de semana ao membro da família real britânica, o realizador utiliza casas mal assombradas, alusões tétricas e outros subterfúgios do horror. O objetivo era construir uma metáfora sobre o estado de espírito da mulher asfixiada pelos protocolos e pela indiferença da nobreza. Já aqui Larraín cria uma fábula gótica com características de farsa em que a celebridade habita um mundo macabro com criaturas e afins. Pinochet (Jaime Vadell) é um andarilho histórico com mais de 250 anos que aprendeu na França a ter nojo das revoluções. Séculos depois, radicado num pequeno país sul-americano sem rei, decidiu tomar o poder à força transmutado em militar autoritário. No filme o vemos decadente, decidido a morrer definitivamente depois da mentira que o permitiu sumir do mapa no Chile democrático. Visitado pelos filhos parasitas, acompanhado por um lacaio pegajoso e por uma esposa invejosa de sua vida eterna, Pinochet é confrontado por uma freira exorcista andrógina.
Distante da densidade emocional de seus trabalhos anteriores, Pablo Larraín se aproxima da sátira política por meio desse Nosferatu que sugou o sangue de um país subdesenvolvido, como convém a um alistado das trevas. Considerado por muitos como um dos principais cineastas da América Latina na atualidade, Larraín recorre ao expediente de alegorizar o mal, algo tão caro ao Expressionismo Alemão. Logo depois da Primeira Guerra Mundial, artistas como Fritz Lang, F. W. Murnau e Robert Weine se valeram de contrastes marcados entre luz e sombra, linhas e cenários distorcidos e outros enviesamentos para trazer à tona os aspectos conflitantes de uma Alemanha que perdeu o conflito global. A desesperança, o sofrimento, o medo diante do futuro, tudo isso nutriu histórias sombrias habitadas por monstros que simbolizavam personagens e aspectos de uma dura realidade. Em O Conde é justamente isso o que acontece, com Pinochet virando um ser demoníaco para dar uma dimensão metafórica aos horrores que sobrevieram ao golpe de estado que depôs o então presidente socialista-marxista Salvador Allende em 11 de setembro de 1973. Mas, como citado anteriormente, a solenidade é deixada de lado em função de um deboche com retrogosto cáustico e algumas conexões que são talvez óbvias demais. Um militar que sugou a vitalidade da nação, filhos que tentam vampirizar espólios da ditadura, etc.
Visualmente falando, O Conde é um dos filmes mais bem elaborados de Pablo Larraín. Assinada por Edward Lachman, a fotografia lindíssima em preto e branco é elegante e ao mesmo tempo se encarrega da beleza. Diferentemente de boa parte dos filmes de terror, em que o aspecto fotográfico se soma a outros elementos para gerar desconforto, aqui ele trabalha em prol da camada lírica da representação, ou seja, tende a enfatizar o bonito e não o incômodo. Especialmente as cenas de voos vampirescos são impressionantes, com as figuras das trevas pairando sobre um Chile que atualmente respira os ares democráticos. A construção narrativa segue as regras básicas das farsas, vide personagens abertamente caricaturais e intenções tão escancaradas que geram uma noção persistente de ridículo. Ao se deparar com o corpo jovial de uma freira, religiosa que entra de modo sorrateiro em sua vida, Pinochet é um secular sobrevivente da História semelhante a qualquer homem em crise etária. Já o criado vivido por Alfredo Castro representa uma fidelidade mesclada com inveja, típica da classe dos ratos que primeiro abandonam os navios naufragados – insistente aqui por ter ganhado um “presente”. E os filhos parasitas entram naquela lógica das metáforas um tanto óbvias, a dos herdeiros que não podem fazer outra coisa senão agir como abutres carniceiros ávidos por alguém provedor.
Mesmo que tenha sido vencedor do prêmio de Melhor Roteiro no recentemente encerrado Festival de Veneza, O Conde peca justamente nos ajustes finos ao combinar/equilibrar tantos personagens indicativos e alegorias. Pablo Larraín (autor do texto ao lado de Guillermo Calderón) permite que o filme avance meio desinteressado às vezes, com situações resolvidas sem antes ter algum tempo de amadurecer na trama. Por exemplo, a disposição da freira Carmencita (Paula Luchsinger) de ultrapassar os limites em prol do sucesso de sua missão divina como exorcista ou mesmo a falta de escrúpulos dos filhos que pensam apenas naquilo que podem lucrar com a eventual morte do temível Conde Pinochet. Felizmente, essa sensação é compensada pelo ótimo plot twist encarregado de explicar a origem vampiresca do ditador, ao mesmo tempo em que introduz de modo ácido e engraçado outra personalidade história ultraconservadora. A mensagem é cristalina: o fascismo e/ou os ímpetos associados ao espectro político da ultradireita são males capazes de se perpetuar ao longo da História, nunca morrendo efetivamente, pois se alimentam da força vital da população sacrificada em função de projetos de poder. O realizador utiliza a metáfora para chamar Pinochet e sua prole de ladrões, cutucar os métodos da Igreja e ainda envolver gente perversa por uma aura ridícula. Um filme catártico.
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