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Sinopse

Egor é veterinário numa escola de treinamento de cães de caça. Vivendo num ambiente ermo, ele mora nas adjacências da residência de seu chefe, curando bichos, monitorando colegas e atendendo clientes. É o tipo do sujeito que se sente mais confortável na companhia dos animais.

Crítica

Em O Coração do Mundo prevalece uma economia narrativa. Ela funciona em prol da deflagração de sentimentos e impossibilidades nem sempre escancarados. A cineasta Nataliya Meshchaninova parte da concepção de que palavras são poderosas como instrumento de comunicação, mas talvez não páreo aos gestos quanto à capacidade de revelar componentes arraigados. Exemplo disso, a forma como o protagonista Egor (Stepan Devonin, numa composição eloquente) reage à notícia repentina da morte da mãe que mora distante. Ao choque natural, sobrevém a negação do reestabelecimento de qualquer vínculo, ao ponto de inviabilizar a conversação com os parentes que estão cuidando dos trâmites do velório. Esse veterinário encarregado da saúde dos animais numa propriedade em que são treinados cães de caça é o tipo do personagem incapacitado de externar tudo aquilo que lhe importuna a existência e turva a percepção. Aos poucos, o roteiro habilmente oferece indícios de quem ele realmente é, dos problemas que ressoam como âncoras e de suas várias dores.

A rotina de Egor é feita de simplicidade e repetição. Diariamente, acorda cedo, alimenta os bichos, confraterniza com a família do empregador, isso além de zelar pela saúde de uma cadela gravemente ferida, cujo destino, sem sua intervenção, seria a eutanásia. O Coração do Mundo tem em seu tecido narrativo a insuspeita complementariedade entre esse mundo externo sem tantas complicações, restrito às reiterações e a uma praxe estabelecida, e os impulsos internos/reprimidos, fermentando por debaixo da casca de normalidade. Entretanto, a realizadora não determina o diálogo fértil de pronto, primeiro garantindo que o espectador tenha contato e experiência com o cotidiano na propriedade enlameada. Apenas quando exposto o conflito ocasionado pela presença de ambientalistas preocupados com o tratamento dispensado às raposas, ela permite ao protagonista expor seu íntimo. Sem demarcar demasiadamente as motivações, deixa terreno para compreendermos a crescente inclinação do veterinário ao abismo como maneira desajeitada de proteger o lar.

Há claros paralelos entre a personalidade fraturada de Egor e os animais machucados a quem ele se dedica diariamente, com um zelo comovente. Nesse plano metafórico, ele seria tanto uma projeção da cadela ferida, prestes a sucumbir, mas resistente desde que à sombra do afeto alheio, quanto uma das raposas ansiando por liberdade, mas regressas ao cativeiro por força do costume. Também é possível promover uma ponte emocionalmente consistente entre ele e o neto do patrão, algo ressaltado sobretudo nos instantes em que a mãe trata o menino com rispidez. O diálogo doloroso com a tia que veio de longe para resolver a herança permite o acesso a dados imprescindíveis do passado, alguns essenciais para ressignificar simbolicamente passagens anteriores e compreender outras vindouras. Gradativamente, o filme se fundamenta como um estudo profundo de personagem, ao qual não são necessárias explicações. Nataliya Meshchaninova deixa muito às entrelinhas, assim gerando um percurso instigante, igualmente feito de ambivalências. Estas estão evidentes no modo como o protagonista trata os jovens ambientalistas, ora gentilmente, ora agressivamente.

Coração do Mundo fala de um sujeito que irá às últimas consequências para proteger talvez o único espaço – afetivo e geográfico – em que se sente familiarizado. Porém, essa compreensão passa pelo entendimento das ambiguidades dos vínculos de Egor. Novamente numa alusão aos animais bem cuidados, mas dentro da dinâmica de encarceramento e supressão de liberdades, ele se apega aos que o tratam com dignidade, embora permaneça vigente a lógica essencialmente empregatícia. As sutilezas abundantes não reverberariam com tamanha potência dramática sem o empenho do elenco, principalmente o de Stepan Devonin. Ele consegue oscilar entre ditos e não ditos com semelhante carga expressiva, além de tornar bastante orgânica a transição do estado de costume com as tarefas veterinárias, as tratativas humanas do dia a dia, ao turbilhão de instabilidades engatilhadas pelo acesso forçado às feridas abertas O comedimento da encenação, a valorização dos acenos, a utilização das alegorias, tudo isso bem articulado garante o resultado sensível, tênue e potente.

Filme visto online no 1º Festival de Cinema Russo, em dezembro de 2020.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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