Crítica
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Sinopse
O abismo existente entre a trajetória da desconstrução do corpo da mulher negra como objeto e da mulher branca ainda é real. A liberdade do corpo feminino, seja na música, dança ou na sexualidade, e a desconstrução da visão de masculinidade a partir do feminismo.
Crítica
Documentário ou ficção? Atualmente, um questionamento como esse parece nem fazer mais sentido. Documentários estão cada vez mais fazendo uso de recursos típicos da ficção, assim como essa tem se apropriado com legitimidade de elementos documentais para incrementar sua suposta verossimilhança. Sendo assim, seria importante deixar de lado este tipo de dúvida ao se posicionar diante de uma obra como O Corpo é Nosso, de Theresa Jessouroun. No entanto, o docudrama – ou documentário ficcionalizado – falha justamente no que lhe é mais crucial: a conjunção do seu hibridismo. Há de um lado uma dramatização claudicante, que mais serve como desculpa para o que se quer, de fato, discutir. Por outro, surge um amontoado de informações e depoimentos que visam corroborar o discurso, mas se veem soterrados por um didatismo que mais afasta do que aproxima. Em resumo, há aqui dois filmes, e nenhum dos dois parece fazer muito sentido.
Quando um jornalista (Renato Góes) recebe do seu editor (Oscar Magrini) o pedido para fazer uma grande reportagem sobre feminismos (sim, no plural, pois são muitos e diferentes entre si), sua reação inicial é de estranhamento. “Por que não mandar uma mulher no meu lugar?”, pergunta. Aliás, seu espanto e motivações para recusar a ordem superior são ainda mais clichês: “eu gosto de mulheres, mas isso não me credencia a falar sobre elas”. O que importa, no entanto, é que de nada adiantam suas reclamações. Assim, com uma tarefa gigante pela frente, começa a dar seus primeiros passos, iniciando uma pesquisa que irá lhe consumir os próximos dias – e todo o restante da projeção. Afinal, O Corpo é Nosso é exatamente isso: o trabalho desse repórter. No entanto, ele nem soa como um dos melhores da sua área, pois tudo o que faz é pesquisar vídeos na internet – todos bastante corretos e elucidativos – e se acomodar nos fundos de um estúdio de uma cineasta – a própria Theresa Jessouroun, citada nominalmente em cena – que está fazendo um longa sobre o tema.
O filme dela, como se percebe, é tema... do filme dela! Essa esquizofrenia por pouco não chega a roubar o protagonismo, e isso só não acontece (o que é bom) por causa desse ambiente ficcional no qual está inserido (o que é ruim). Pois na primeira saída em campo, o repórter decide ir a um baile funk – espaço onde as mulheres são livres para se expressar, na dança e na música, sem repressão ou preconceito dos seus iguais – e assim que chega se depara com uma paixão de adolescência. Dezoito anos de passaram, e Fatinha (Roberta Rodrigues) – ou Maria de Fátima, como ela faz, agora, questão de frisar – é outra mulher (ao menos diante dos olhos dele). Para o rapaz, foi um namorico com a filha da empregada que acabou quando foi mandado pelos pais para um intercâmbio na Europa. Para a moça, foi um relacionamento abusivo que, assim que engravidou, o filho do patrão fugiu e ela se viu sozinha, tendo que criar uma criança sem qualquer tipo de ajuda.
Esse drama seria forte o suficiente para justificar uma produção só para si – sempre correndo o risco, é evidente, de resvalar no melodrama novelesco caso não fosse abordado com o necessário distanciamento e precisão. No entanto, a diretora anseia em ampliar seu olhar, e usa esse argumento apenas como ponta de lança de um debate ainda maior. Assim, de forma quase tutorial, parte para um relato histórico, enfileirando entrevistas com psicólogos, ativistas e pesquisadores, que criam uma narrativa progressiva a respeito da tomada de consciência do corpo feminino, desde o final do século XIX, quando eram como ‘bonecas’ dos homens, sem função além de cuidar da casa e dos filhos, até os dias de hoje, com Marcha das Vadias e outras manifestações similares. Pelo caminho, passa-se por Leila Diniz e as rainhas do rádio, do maxixe ao samba, da revolução sexual dos anos 1970 ao #MeToo. É muito complexo, mas compreende tanta coisa que não tem como deixar de ser também superficial em cada abordagem. Um grande resumão, portanto.
Nessa aula introdutória que talvez encontre seu propósito junto àqueles que se esconderam debaixo de uma pedra nos últimos anos, luta também para ser ouvido esse homem branco que sofre por ter abusado da moça negra tantos anos atrás, sem nem ter se dado conta do mal que havia feito. Há um processo de transformação nele, e isso não deixa de ser saudável. Mas seria ainda mais pertinente ouvir o lado dela, a que sofreu e foi abandonada, um viés que não é visto por mais do que um relance. O Corpo é Nosso, sim, mas há um forte embate a respeito de lugar de fala em curso, algo que chega, inclusive, a ser questionado, porém de forma equivocada, mirando um alvo que não existe, enquanto outros seguem ignorados. Assim, uma oportunidade se perde, e ao invés de propor confronto, reafirma antigos estereótipos, numa tentativa vã que apenas reforça o que deveria, enfim, combater.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Robledo Milani | 3 |
Roberto Cunha | 5 |
Francisco Carbone | 1 |
MÉDIA | 3 |
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