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Sinopse

O policial Joe Bayler está trabalhando como atendente do serviço de emergência 911 enquanto espera o dia em que será julgado por um delito. Ele recebe a ligação desesperada de uma mulher que diz ter sido sequestrada pelo ex.

Crítica

Há vários motivos para se fazer um remake. As sociedades mudam ao longo do tempo, então retrabalhar premissas antigas sob vieses novos é umas das boas razões. Também podem ser bem-vindas as releituras de acordo com as particularidades territoriais, étnicas, coletivas, de comportamento sexual, etc. Um causo contado no Brasil leva em consideração a nossa cultura, que é evidentemente diferente das estadunidense, africana, europeia, oriental, médio-oriental e por aí vai. Inverter gêneros e introduzir elementos progressistas em tramas antes menos atentas à diversidade humana são outros pretextos positivos para repaginar formas e/ou conteúdos. Levando em consideração que o excelente filme dinamarquês Culpa (2018) foi lançado há pouco mais de três anos, é difícil imaginar que ele já tenha se tornado datado, obsoleto ou mesmo anacrônico. Portanto, antes de assistir à refilmagem norte-americana, O Culpado, podemos partir da suposição de que transpor o enredo aos Estados Unidos seja uma forma de apresentar a mesma história com um prisma sociocultural singular o suficiente para justificar a empreitada. Em parte, isso é ensaiado nos primeiros momentos do longa-metragem dirigido por Antoine Fuqua. De fato, a nova produção é hollywoodiana por excelência, porém, menos pela adaptação de temas e atitudes, mais pela maneira como evidencia uma mentalidade cinematográfica.

Culpa teve destaque no cenário internacional pela criatividade de uma dinâmica eletrizante, na qual havia um choque narrativo entre campo e extracampo, ou seja, entre aquilo que era mostrado (dentro do plano) e o que era sugerido (fora do plano) pela voz das pessoas com as quais interagia o atendente do serviço de emergência. O protagonista era um homem na berlinda, externa e internamente em crise por ter cometido um crime. Nesse exemplar dinamarquês havia dois pilares sustentando o suspense, bem como a densidade dramática: a radicalidade de manter a ação sendo basicamente ouvida, o que obrigava o espectador a imaginar tudo e também o aproximava da experiência única do atendente; e o oferecimento de pequenos indícios da personalidade do anti-herói, o que tornava as coisas ainda mais intrincadas. A tal mentalidade hollywoodiana antes citada como diagnóstico óbvio nos momentos iniciais do remake é deflagrada principalmente pelas simplificações e por uma mudança sensível de perspectiva. Em Culpa tínhamos uma situação tétrica e desesperadora sendo conduzida por um homem em pedaços. Uma coisa nutria a outra e, assim, era estabelecida uma lógica de retroalimentação. Em O Culpado temos o homem em pedaços intermediando a situação tétrica. A troca de prioridades (no dinamarquês, o episódio; no estadunidense, o condutor) dita a diferença de tom. Parece a mesma coisa, mas é bem diferente.

O diretor Antoine Fuqua, com base no roteiro assinado por Nic Pizzolatto, privilegia a experiência de Joe (Jake Gyllenhaal), especialmente na primeira metade de O Culpado. O calvário do atendente em frangalhos é muito mais enfatizado do que a ligação da angustiada Emily (voz de Riley Keough) dizendo-se sequestrada pelo ex-marido. O sujeito que está esperando para ser julgado é milimetricamente investigado para que o espectador não tenha quaisquer dúvidas a respeito de que "materiais" é feito. Ao atender a chamada do descinhecido drogado que pede socorro, ele é displicente e chega a repreender seu interlocutor por fazer uso de substâncias ilícitas. Um pouco adiante, ao receber a ligação do homem roubado pela prostituta, tem um comportamento moralista parecido, uma atitude que carrega implicitamente o não dito (mas claro) "você mereceu". E esse traço da personalidade é pouco utilizado para definir o personagem. Em raros momentos o protagonista deixa de ser o centro das atenções, pois todo o resto acontece para possibilitar a sua redenção. Hollywood ama essas figuras que passam por calvários até entenderem a necessidade da assumir seus erros em busca de uma reparação modificadora. E essa lógica dogmático-religiosa baseada em pecados, culpas, contrições e transformações orienta o discurso do filme. É uma alteração significativa em relação ao original que abordava os tópicos com frequências menos sustentadas por um alicerce primariamente cristão.

Outro ponto que enfraquece O Culpado numa comparação imediata com Culpa é a construção visual. No longa dinamarquês, o cineasta Gustav Möller radicaliza o confinamento e a sugestão da ação por meio do que se ouve. A produção europeia tem um aspecto minimalista, vide o cenário com pouquíssimos elementos. Já no norte-americano, Antoine Fuqua chega a visualizar a conjectura de Joe, um expediente meramente ilustrativo que rompe a intransigência do jogo ver/imaginar. Além disso, ele incorpora à história incêndios na Califórnia e ambienta tudo numa central mais bem equipada e visualmente povoada. O efeito é o protagonista contemplando telões que registram o avanço das labaredas, um jeito pouco sutil de aludir ao inferno pessoal que ele está vivenciando naquelas horas. E outros instantes enfatizam a falta de leveza das analogias e metáforas. São recorrentes os planos do telefone de Joe, cujo papel de parede é uma foto de sua filha. A função disso é lembrar o espectador de que ele, em parte, é afetado porque inconscientemente se identifica com a vítima. Pena que adiante o cineasta não invista na inversão desse reconhecimento que, então, faz o policial odiar o criminoso num processo de autoflagelo por se equiparar (também inconscientemente) com esse pai supostamente culpado. O desempenho de Jake Gyllenhaal é intenso. No entanto, ele expressa cada milímetro de suas angústias, sendo transparente e não deixando escapar (como no original) que está fazendo uma força danada para esconder seus sentimentos conflitantes. Aqui é tudo mais esmiuçado, falado e esclarecido.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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