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Crítica


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4 votos 8.6

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Sinopse

Um incidente gera uma fissura na até então harmoniosa convivência de pessoas em meio a um treinamento para sobrevivência. A prioridade passa a lutar para permanecer vivo.

Crítica

É no mínimo curioso assistir à O Declínio em tempos de pandemia. Uma vez que boa parte da população está confinada em suas respectivas casas por conta do novo coronavírus, inicialmente até não parece de todo despropositada a preocupação sufocante de David (Marc Beaupré). Ele se cerca de mecanismos para sobreviver a imprevistos que dificultem acesso a provisões básicas. O youtuber ao qual se refere como guru fala, por exemplo, da urgência de criar alternativas para suportar uma epidemia, “quem sabe um surto global de H1N1”. Mas, mesmo que a realidade incerta atravesse essa trama, a colocando em outro patamar de entendimento, logo soa realmente exorbitante a obsessão com essa preparação ao apocalíptico. A apressada evasão, na calada da madrugada, da ilha em que vivem o protagonista, a esposa e a filha pequena é um indício da exacerbação da apreensão que assume contornos de patologia disseminada num contingente expressivo.

Toda a primeira metade de O Declínio é dedicada mapear e radiografar pessoas que comungam dessa inquietude com as incertezas de um mundo “prestes a explodir”, econômica, social e/ou climaticamente. Alain (Réal Bossé), o instrutor que ganha respeito entre os alarmados por meio de lições de racionamento e afins, criou uma espécie de santuário afastado, um oásis no qual ministra treinamentos intensivos para quem deseja passar relativamente incólume por qualquer cataclismo. O texto e a encenação dos exercícios esclarecem os métodos e, por conseguinte, as observações contundentes do filme, com personagens discutindo o Armagedom enquanto praticam. Dentro de uma rigidez bastante parecida com a militar, com direito a toque de recolher e chamadas de atenção a quem pisa fora do pré-estabelecido, homens e mulheres debatem como evitar eventuais perigos. Alguém chega a mencionar árabes como nocivos, mas não há aprofundamento nessa visão xenófoba.

A segunda metade de O Declínio, engatilhada pelo incidente mortal, é alimentada por uma dinâmica em que os pactos anteriormente firmados não mais servem para mediar as relações então estremecidas. Gradativamente o protagonismo do longa-metragem é diluído pela conjuntura de uns caçando vorazmente os outros. A reflexão dá lugar à corrida desenfreada para enfrentar os agora inimigos reais. O que se desprende disso é que, ao contrário do pregado na fase de apresentação, o risco real e imediato é o dessa mentalidade egoísta e nutrida por preocupações elevadas à potência da paranoia. Uma vez guiados pelas noções de atemorização incessante, os participantes do seminário percebem se esvaindo as possibilidades de recorrer ao humanismo e aos códigos morais para fazer valer “o que é certo”. O roteiro, contudo, passa a não gerar novos subtextos, ao contrário do que faz até a morte detonadora dos conflitos, preferindo adensar os existentes e sublinhar a resiliência.

Ainda que haja um desequilíbrio na sua execução, O Declínio é um bom exemplar de um cinema que tem lançado luz sobre circunstâncias limítrofes e pessoas levadas às fronteiras que divisam civilização e barbárie. Para certos personagens não é concebível ocultar um cadáver e seguir como se nada tivesse acontecido. Estes são os dotados de doses de racionalidade em tempos de crise. Já a outros, a começar pelo mentor/propagador das perspectivas sociais pavorosas, tudo é cabível desde que a unidade da doutrina se mantenha intacta. Numa Era em que testemunhamos o (re)aflorar de certos fanatismos – terraplanismo, xenofobia, nazismo e afins –, o filme se encaixa como uma curiosa concepção de agrupamento baseado, primeiro, em ideias confluindo harmonicamente num coletivo, e, segundo, na assimetria ante à forma como os integrantes de discurso aparentemente afinado reagem diante de uma efetiva situação mortal. Em meio a isso, a erupção da brutalidade como verdadeiro dispositivo de autopreservação, sendo a gentileza uma exceção à regra da selva.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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