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Sinopse

Entediado em sua rotina burguesa, Ferdinand decide cair na estrada com um velho amor do passado. Perseguido por mafiosos e pela polícia, o casal passa um tempo num cenário idílico pensando sobre cinema, literatura e política.

Crítica

Quando encontramos Ferdinand (Jean-Paul Belmondo), ele é um nada saudoso ex-trabalhador da televisão. Mesmo que tenha sido demitido recentemente, o sujeito não dá muita bola para as indefinições práticas do futuro. Casado com uma italiana que frequenta os mais altos círculos da sociedade francesa, Ferdinand exala tédio dentro dos ambientes pré-formatados por ideias burguesas de bom gosto. Os grupos nos quais transita são condicionados pela mídia de massa e a publicidade. Tanto que numa festa estranha repleta de gente esquisita o cineasta Jean-Luc Godard elege a propaganda como um dos pilares dessa coletividade esvaziada e repetitiva. O protagonista passa pelos estilizados quadros monocromáticos como desinteressada testemunha das conversas que assumem deliberadamente o tom de reclames comerciais. Mulheres dizem que seus cabelos são sedosos por conta de determinado produto que acabou de chegar às prateleiras e marcas de desodorantes são “vendidas” em conversas monótonas como se fossem a oitava maravilha do mundo. Justamente desse universo artificial que o sujeito escapa com a bela e subversiva Marianne (Anna Karina). É icônica a cena de ambos conversando sobre como se conheceram no passado enquanto rumam ao desconhecido estrada afora. Nela, Godard sublinha a primazia do artifício, vide o automóvel balançando como se estivesse em movimento e a iluminação caleidoscópica que transforma o para-brisa em moldura para os feixes de cor. É puro cinema.

A narrativa assimila os contornos dos filmes de estrada (road movie) exatamente quando Ferdinand e Marianne optam por se afastar dos problemas da metrópole – ele foge do tédio e das estruturas que tendem a torna-lo mais um na reunião burocrática de desejos sugeridos; já ela escapa da perseguição de mafiosos com os quais se relacionou até aquele momento. O Demônio das Onze Horas se torna uma espécie de paradigma bastante forte e emblemático desse tipo de abordagem que prevê dois amantes (geralmente inseridos numa dinâmica marginal) em movimento como única forma deles se livrarem das amarras sociais. Dá para dizer que o filme de Godard, especialmente seus potentes ideais libertários, devem ter inspirado obras como Bonnie e Clyde: Uma Rajada de Balas (1967), Terra de Ninguém (1973), Coração Selvagem (1990), Thelma & Louise (1991), entre muitos outros que utilizam uma premissa semelhante. Aliás, no campo das referências, o cineasta francês provavelmente bebe na fonte do bergmaniano Mônica e o Desejo (1953) – do qual a turma da Nouvelle Vague era muito fã – para desenhar o que podemos chamar de segundo momento da trama. Sim, pois nele os personagens deixam para trás a necessidade de manter-se em deslocamento para fugir da polícia e dos bandidos em prol da rotina breve e idílica num paraíso à beira-mar. Assim como Ingmar Bergman, e também Terrence Malick em Terra de Ninguém, Godard constrói o paraíso perdido para um Adão e uma Eva que estão condenados.

O Demônio das Onze Horas pertence àquela fase da carreira de Jean-Luc Godard em que ele utilizava alegorias para abordar os grandes assuntos (vida, morte, política, existência, sentimentos, emoções, arte) em meio ao relacionamento entre um homem e uma mulher. Em Acossado (1960) há a meditação sobre o cinema e a transgressão dentro da homenagem aos filmes B norte-americanos. Em O Desprezo (1963), a tradição da literatura (a Odisseia de Homero) é filtrada pelo cinema que, por sua vez, oferece suas ferramentas à discussão idealizada em cores sobre os mistérios dos vínculos amorosos. Aqui, o ideal de liberdade e afeto dos protagonistas passa por conversas aparentemente banais sobre trivialidades e pontuais pílulas sobre as guerras do Vietnã e da Argélia. Na mesma medida, o cinema surge como uma fonte de aspectos gramaticais/formais que são ressignificados. Assim como tinha feito em outras produções que dialogam com a tradição do cinema narrativo, Godard utiliza elementos do gênero policial/noir para determinar a tonalidade do início e do fim da história, ou seja, do começo impetuoso e do clímax antecedido por perseguições, traições, lutas corporais e afins. Já a erudição como matéria-prima é vista no uso constante de referências literárias. Aliás, erudito e popular dialogam, pois também temos vislumbres de quadrinhos e pinturas como transições visuais de semelhante peso. E o bordão “Meu nome é Ferdinand” (resposta repetitiva para quando Marianne chama o protagonista de Pierrot) alude a um tipo de humor bastante popular. Há uma diversidade instigante de signos, fontes e influências sendo processados.

Em O Demônio das Onze Horas, Jean-Luc Godard não demonstra preocupação com qualquer senso de literalidade das cenas. Ele desloca a atenção aos efeitos que determinadas encenações e construções possam causar no espectador. Nesse sentido, é verossímil (pois coerente dentro de um universo muito singular) que as conversas no quarto de um apartamento não sejam perturbadas pelo cadáver estirado noutro cômodo. Tampouco é estritamente realista a mulher discursando contra lingeries enquanto está com seios à mostra ou o paraíso intermediário no qual Ferdinand e Marianne se encontram – com direito a araras e raposas. Na verdade, o filme não fornece subsídios para separarmos a realidade da representação, pois trata tudo como um bloco único: o cinema. E no cinema as regras da vida (e as lógicas) não podem ser aplicadas cartesianamente. Além dessa abordagem que reforça o amor de Godard pela supremacia romântica da Sétima Arte sobre a pasmaceira da vida comum – o que permite os números musicais, por exemplo –, não podemos deixar de citar como grandes trunfos as interpretações de Jean-Paul Belmondo e Anna Karina. Marianne é a nova mulher do pós-guerra que reivindica o protagonismo social (algo escancarado na cena dela discursando enquanto atira). Ele é o sujeito que mergulha voluntariamente na vertigem da controvérsia, colocando-se no redemoinho para ver o que sobra desse turbilhão. E se Karina mistura de graça e perigo, Belmondo é um corpo livre que transita pelo cenário sem prender-se a marcações. Ele faz gestos improváveis, pois é uma presença que exige alforria.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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