Crítica


5

Leitores


7 votos 8.8

Onde Assistir

Sinopse

Marguerite é uma brilhante estudante de matemática na renomada Escola Normal Superior de Paris. No dia em que deveria apresentar sua tão aguardada tese, ela se depara com um erro capaz de abalar todas as suas estruturas.

Crítica

Para construir a trama de O Desafio de Marguerite, a cineasta Anna Novion optou por contrastes bem demarcados. A protagonista do longa-metragem é Marguerite (Ella Rumpf), matemática brilhante prestes a apresentar um trabalho possivelmente revolucionário. E ela atende a todas as características frequentemente utilizadas para retratar os gênios obsessivos no cinema: é introspectiva, tem dificuldades de socialização e exibe até mesmo alguns pequenos tiques nervosos. Seu contraponto evidente é Lucas (Julien Frison), alguém equivalente em intelecto e capacidade lógica, mas muito diferente no quesito comportamento. Enquanto Marguerite é uma pessoa de personalidade cinzenta, Lucas é solar, toca numa banda super animada do campus, sempre exibe um sorriso no rosto e parece ter uma atitude muito mais positiva diante da vida, inclusive frente às equações a serem resolvidas. Nessa abordagem de polos opostos, Lucas é sugerido implicitamente como um modelo a Marguerite, alguém em quem se espelhar, pois é sociável e ainda assim notável. É como se a cineasta nos dissesse a todo instante: “é preciso Marguerite se abrir mais ao mundo, equilibrar o empenho matemático e a necessidade de ter interações humanas”. De certo modo, é uma atitude um tanto reducionista essa a da direção, pois ela apresenta desde cedo um modelo no qual a protagonista precisará se encaixar.

Um aspecto muito positivo de O Desafio de Marguerite, especialmente em sua primeira metade, é ter como protagonista uma personagem não necessariamente razoável. A maioria dos filmes tem como figuras principais pessoas com as quais podemos nos conectar por associação, geralmente heróis e heroínas sempre dispostos a fazer a coisa certa. Desse modo, o espectador permanece numa posição confortável, pois é convidado a se identificar (o que facilita a empatia) necessariamente com alguém positivo (o que cria uma sensação de “me reconheço nessa positividade”). Felizmente não é o que acontece por aqui. Marguerite é obcecada por resolver um problema que assombra matemáticos por décadas e, uma vez contrariada durante a apresentação pública, simplesmente abandona o quadro negro e dali em diante inicia uma escalada de decisões estranhas que parecem fruto de uma jovem mimada. Ela não demonstra qualquer capacidade para lidar com o fracasso, aparentemente preferindo desistir da carreira à qual tem um talento imenso se não corresponder às expectativas praticamente inalcançáveis. Parece que Anna Novion vai tomar um caminho menos fácil, esse o de desenvolver uma personagem que precisará rever seus conceitos e aceitar a derrota como um fardo comum. No entanto, as convenções se esgueiram sorrateiramente pelas frestas e definem essa narrativa.

Gradativamente se distanciando da ideia de observar alguém a partir de suas complexidades não necessariamente agradáveis, Anna Novion vai confirmando a predisposição pelo simplismo, tendência anunciada pelos contrastes marcados e pela falta de nuances entre eles. Em seus dois últimos terços, mesmo que contenha personagens interessantes e uma história bem contada, O Desafio de Marguerite não faz muito mais do que desenhar a trajetória que podemos considerar como uma espécie de educação sentimental forçada, na qual Marguerite mantém aspectos fundamentais de sua personalidade, mas aprende a ser alguém melhor e se tornar menos cartesiana. A nova colega de apartamento (aliás, outro contraponto exuberante à apatia de Marguerite) a ensina a conviver diariamente com os defeitos alheios; Lucas lhe oferece a oportunidade de um trabalho em dupla que minimiza a sua tendência à solidão; e a soma mãe preocupada + professor rigoroso vai moldando a sua forma de encarar as figuras de autoridade que tanto a atormentam. Então, para cada cena ligeiramente destoante dos lugares-comuns (como ela tomando a inciativa de flertar e transar com um desconhecido) há outras tantas que reafirmam o direcionamento semelhante a uma lição de moral. No fim das contas, excetuando essas mudanças leves, o êxito continuará sendo o único resultado que apaziguará essa mulher.

Outro dado interessante, mas não enfatizado ao longo do filme, diz respeito a uma lógica de gênero. Marguerite é a exceção feminina num campo predominantemente masculino, vide seu rival, o professor e a horda de homens (somente eles) que se juntam no auditório durante o clímax que tende a servir como prêmio ao esforço de Marguerite para ser uma pessoa melhor. Em nenhum momento a cineasta Anna Novion encara o sexismo acadêmico como obstáculo ou mesmo sinaliza a predominância masculina na paisagem como algo indicativo. No entanto, o grande problema nem é esse (sublinhar ou não a lógica de gênero é legítima opção diretiva). O principal obstáculo à grandeza em O Desafio de Marguerite é a ingenuidade das relações de causa e efeito, sobretudo a proposição das recompensas de acordo com a disponibilidade da protagonista à mudança. Caso se abra um pouco mais ao outro, ela terá casa, afeto, sucesso profissional e até uma lucrativa carreira paralela nas mesas clandestinas da mahjong. Há um quê moralista nesse enredo que aponta caminhos inequívocos à felicidade, sem a compreensão de que as estradas não funcionam da mesma forma para todos. E, para arrematar a aderência aos clichês desse tipo de filme edificante sustentado pela transformação, surge o interesse amoroso enxergado romanticamente como parte faltante. No fim das contas, Marguerite é apresentada como uma equação complexa e intrigante, mas resolvida por meio de operações muito simples.
Filme visto no 14º Festival Varilux de Cinema Francês

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

Grade crítica

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *