float(6) float(2) float(3)

Crítica


7

Leitores


2 votos 6

Onde Assistir

Sinopse

Inúmeros conflitos civis eclodiram no continente africano nas últimas décadas, seja por questões tribais ou por questões de descolonização. Um deles, pouco conhecido, é o que acontece na região do Saara Ocidental, impulsionado pela saída da Espanha do local, país colonizador que dividiu a região entre o Marrocos e a Mauritânia, algo que provocou uma guerra sem fim e também a dispersão da população saharaui.

Crítica

Uma das primeiras imagens de O Deserto do Deserto, documentário dirigido pelo brasileiro Samir Abujamra e pelo chileno Tito Gonzalez Garcia, traz um homem de idade avançada, trajando um manto branco, tal qual sua longa barba, e um turbante preto. Sentado à mesa em pleno deserto, essa figura de ares proféticos, que se põe a citar nomes que, gradativamente, remetem às mais antigas gerações, assume uma posição de guardião da história e das tradições, de elo entre o passado e a situação atual de seu povo, originário da região do Saara Ocidental. O território, considerado a “última colônia da África”, esteve sob um domínio secular espanhol até meados da década de 1970, quando foi dividido entre Mauritânia e Marrocos, sendo que a ocupação marroquina perdura até hoje, gerando um conflito aparentemente sem fim.


Buscando lançar alguma luz sobre esse cenário – que, apesar da gravidade, permanece obscuro aos olhos de parte do mundo – a dupla acompanhou por mais de um mês o cotidiano dos saharauis, registrando sua luta pela sobrevivência. Aguardando um referendo, nunca ocorrido, sobre sua independência, e separados da civilização por um muro de milhares de quilômetros, construído pelos marroquinos – ao logo do qual se encontra um número incalculável de minas terrestres – os saharauis acabaram divididos em grupos que vivem realidades ligeiramente distintas. A maior parcela dos habitantes se encontra em campos de refugiados, na Argélia, onde, apesar de oficialmente considerados apátridas, construíram uma espécie de nação exilada, a RASD – República Árabe Saharaui Democrática. Mesmo em condições precárias, contando basicamente com o auxílio de organizações humanitárias, os moradores dos campos tentam resgatar o senso de sociedade.

Assim, somos apresentados à da dona de um salão de beleza/sauna, ou ainda ao homem que comanda um tipo de lan house, onde garotos locais se divertem jogando videogames depois das aulas. É nesse ambiente, do contato com esses personagens, que os diretores extraem os momentos mais delicados e de olhar mais apurado para o potencial estético e dramático, como a visita a um museu militar improvisado, onde jovens circulam entre tanques de guerra e metralhadoras, ou o registro de um grupo de crianças que realizam uma dança coreografada enquanto entoam uma canção cuja letra, sombria e violenta, contrasta diretamente com o tom alegre da apresentação. Entre os habitantes da RASD está também Mohamed, o ancião visto no início do longa, que reaparece rememorando o auge da guerra contra o Marrocos e assando um pão na areia escaldante.


Outra passagem de grande força emotiva é a que mostra as visitas organizadas pela ONU nas quais moradores saharauis que vivem do lado marroquino atravessam o muro para reencontrar amigos e parentes nos campos de refugiados. Essas pessoas, que sofrem uma perseguição brutal nas ruas, tanto de civis quanto da polícia, apenas por declararem sua origem – como revelam algumas imagens duras e impactantes – sentem-se prisioneiras, encontrando no curto período passado nos acampamentos algum resquício de liberdade. Abujamra e Garcia voltam suas lentes também aos grupos que optaram pela árdua vida nômade, vagando pelo deserto com seus camelos e cabras em busca de fontes de água, o elemento-guia da existência no Saara. Com tanto material em mãos, o longa procura ser o mais didático possível, trazendo letreiros que contextualizam os eventos históricos, bem como um mapa situando a ação vista na tela a todo o momento.

A necessidade dessa contextualização, bem como a grande quantidade de tópicos a cobrir, faz com que muitos sejam abordados superficialmente. A exposição dos diferentes pontos de vista sobre a conjuntura política saharaui – os líderes da RASD que acreditam numa resolução próxima, os jovens nascidos no exílio que defendem a luta armada ou ainda o posicionamento pessimista de um entrevistado que se mostra mais cético, falando em inglês –, por exemplo, deixa o desejo por um debate mais alongado, aprofundado. O mesmo ocorre com a questão do papel da mulher nessa sociedade que, mesmo sendo 100% muçulmana, vê as figuras femininas assumindo uma posição de liderança, exercendo em casa diversas funções que seriam dos homens – soldados que passam a maior parte do tempo em missões no deserto.

Entre achados visuais como as imagens assombrosas da destruição causada pela guerra ou do suspiro de beleza e vivacidade encontrado nas cores das roupas das mulheres em uma cerimônia de casamento, os diretores ostentam, durante quase toda a projeção, a posição de observadores, pouco interferindo na ação. Essa noção, no entanto, acaba alterada durante a jornada, que serve de espinha dorsal ao documentário, de 1.600 km rumo ao Oceano Atlântico, chegando ao único trecho do território saharaui considerado livre – e não visitado por estrangeiros há décadas. Escoltados pelos soldados, Abujamra e Garcia acabam acometidos pela casualidade, beirando a tragédia, que gera um clima de tensão e afeta sua perspectiva, fazendo-os surgir diante das câmeras como personagens ativos. Esse fato eleva incontestavelmente a pujança da experiência de O Deserto do Deserto, que termina cumprindo satisfatoriamente sua proposta informativa, somando a ela uma qualidade reflexiva, como a que se revela nos planos finais – novamente protagonizados por Mohamed – que parecem simbolizar uma passagem geracional, com o banho, a limpeza, apontando para o desejo de um futuro livre das manchas deixadas pelos horrores da guerra.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
avatar

Últimos artigos deLeonardo Ribeiro (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *