
O Devorador de Almas
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Alexandre Bustillo, Julien Maury
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Le mangeur d'âmes
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2024
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França / Bélgica
Crítica
Leitores
Sinopse
Em O Devorador de Almas, o capitão da polícia Franck de Rolan está prestes a investigar uma série de desaparecimentos de crianças numa pequena aldeia francesa nas montanhas, onde cruzará caminho com a comandante Guardiano, que está, por sua vez, a investigar assassinatos no mesmo sítio. Estes casos entrelaçados continuam a trazer referências a uma terrível lenda local. Horror.
Crítica
O cinema nos avisa constantemente de que há poucas coisas tão perigosas quanto uma cidadezinha pacata. Contrariando o senso comum de que o interior é um poço de tranquilidade enquanto as metrópoles são lugares ameaçadores nos quais o pior pode acontecer, há muitos filmes focados na revelação do lado sombrio dessa superficial calmaria. Um dos paradigmas nesse sentido é Veludo Azul (1987), de David Lynch, no qual a obscuridade de uma localidade aparentemente pacífica vem à tona causando ao mesmo tempo fascinação e horror. O Devorador de Almas é um filme bem menos complexo do que essa obra-prima de Lynch, mas tem boas qualidades como um thriller que acontece em torno de duas investigações policiais paralelas. A primeira delas é sobre o duplo homicídio numa pequena aldeia francesa esculpida nas montanhas. Marido e esposa se esfaquearam e chegaram até a se atacar às mordidas logo depois do café da manhã. A segunda das investigações é a respeito dos vários casos recentes de desaparecimento de crianças nas redondezas. Elizabeth (Virginie Ledoyen) é a comandante encarregada de tentar desvendar o que aconteceu entre o casal mutilado. Franck (Paul Hamy) é o detetive em busca das respostas sobre o paradeiro dos pequenos. Em comum os dois têm o fato de serem forasteiros, de não pertencerem àquela comunidade que os enxerga com ressalva.
Os cineastas Alexandre Bustillo e Julien Maury seguem direitinho a cartilha desse tipo de filme com personagens bastante semelhantes. Primeiro, criam uma leve tensão entre esses dois investigadores principais. Segundo, mostram o quanto eles desconhecem a respeito do subterrâneo dessa comunidade fechada, desenvolvida a partir de um famoso sanatório, mas que se tornou agonizante depois do fechamento do hospital. Terceiro, vão distribuindo pistas instigantes pelo caminho, como se estivessem traçando um caminho de migalhas de pão a fim de nos levar à verdade aterradora. Quarto, mostram que existe um elemento potencialmente sobrenatural ao desenvolverem o mito do Devorador de Almas, entidade na qual os locais acreditam como uma espécie de guardião maligno da floresta. Ainda dentro das convenções utilizadas pelos cineastas, Elizabeth é uma personagem em pleno exercício de sua atividade, mas ainda assombrada por uma tragédia pessoal recente. Ela descende de uma extensa linhagem de policiais de cinema que investigam crimes enquanto lidam com fantasmas íntimos paralisantes. Dito tudo isso, O Devorador de Almas é um filme relativamente competente, poucas vezes desinteressante, cujo principal mérito é conseguir manter acessa a curiosidade do público pela maneira engenhosa como continuamente renova as suas dúvidas – o pilar de qualquer suspense.
No entanto, o que impede O Devorador de Almas de ser um filme grandioso, de fazer jus à longa tradição na qual bebe goles generosos, é justamente o desenvolvimento desses elementos. As dúvidas sobre a existência ou não de uma entidade maligna capaz de induzir pessoas ao assassinato e raptar crianças, para o desespero da comunidade local, são elaboradas de maneira pouco eficiente. Em vários instantes da trama, simplesmente nos esquecemos de que há esse receio da existência de uma figura extraordinária que transformaria a lógica em algo obsoleto no meio da investigação. O pano de fundo trágico, que poderia ser um fator complicador para o envolvimento de Elizabeth em casos tão bizarros, não é bem aproveitado. Na verdade, trata-se de um aspecto que não condiciona em nada o comportamento dessa mulher, quando muito a levando a chorar depois de uma ou duas diligências. Portanto, nada que seja essencial ao modo como ela atua ou como aquilo tudo a está afetando. Já a tensão entre Elizabeth e Franck é também insatisfatória como componente expressivo, pois se resume a um par de episódios em que os dois divergem a respeito de procedimentos policiais. Não muito mais. E há também uma quantidade um pouco exagerada de pistas/testemunhas providenciais – respostas em computadores, testemunhas (auto)explicativas, vilões com monólogos também reveladores. etc.
De toda maneira, O Devorador de Almas consegue esconder muito bem a verdade em meio às tentativas dos protagonistas de destrincharem os mistérios. Ainda que não dissequem Elizabeth e Franck durante a missão de ambos, os cineastas Alexandre Bustillo e Julien Maury conseguem apresentar um suspense envolvente capaz de esconder a realidade do espectador quase até o último momento. No fim das contas, há uma “vitória” do racional sobre o irracional, com a realidade triunfando sobre a superstição – mostrando que o maior perigo de uma cidade pacata não é a coleção de histórias fantasiosas passadas de geração em geração, mas as pessoas de carne e osso. O roteiro assinado por Annelyse Batrel e Ludovic Lefebvre exagera um pouco ao concentrar as descobertas principais em um curto espaço de tempo (quando uma coisa vem à tona, parece que alguém tirou a tampa de uma vasilha cheia, já que as descobertas começam a vazar até esgotar o “recipiente”). Em que pese isso, a trama criada para explicar as associações entre assassinatos misteriosos e os não menos inquietantes desaparecimentos infantis é consistente e criativa. Além disso, há uma ou duas coisas que não estavam no nosso radar e que aparecem como complemento interessante dessa jornada repleta de personagens e situações arquetípicas, ou seja, que estão na base da pirâmide conceitual desse tipo de filme. É “mais do mesmo”? Sim. As suas fragilidades acabam abafando os méritos? Também, mas não os sufocam.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Marcelo Müller | 6 |
Leonardo Ribeiro | 6 |
MÉDIA | 6 |
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