Crítica


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Sinopse

Durante a pandemia, o diretor Allan Ribeiro passa os dias em casa com Brendo Washington, jovem baiano que estuda direito. Ele compartilha com as câmeras alguns de seus sonhos: virar presidente, torna-se advogado e médico, e participar do programa Big Brother Brasil. Do lado de fora, os vizinhos seguem suas vidas.

Crítica

O Dia da Posse (2021) pode ser lido enquanto filme de sintomas. O primeiro deles diz respeito à pandemia: assim como inúmeras pessoas, o diretor Allan Ribeiro ficou recluso durante diversos meses em casa, protegendo-se da contaminação por Covid-19. Entediado, ligava a câmera em direção a Brendo Washington, que compartilhou a estadia com ele, e também às janelas dos vizinhos. Assim, captou tanto debates marcados por conflitos - quando o jovem baiano revela o momento em que percebeu sua condição de pobreza durante a infância -, quanto brincadeiras descontraídas, a exemplo da fita improvisada do rapaz, candidatando-se a uma vaga na próxima edição do Big Brother Brasil. O resultado transmite a mistura de tédio e introspecção ao qual fomos confrontados a partir de março de 2020, quando a comunicação se resumiu às aulas online, às conversas com familiares e amigos por telas. O projeto carrega a impressão do filmar-por-filmar, o filmar por necessidade, por distração, para talvez enxergar nas imagens triviais algo especial. Allan e Brendo cortam o cabelo sozinhos, fazem uma torta, varrem o chão, navegam pelas redes sociais. A ausência de um “grande tema” constitui o próprio tema - este é um cinema de gesto, ao invés de um filme de mensagens.

O segundo sintoma se encontra no nicho de obras de autoexposição. Cerca de dez anos atrás, o cinema brasileiro independente, jovem, autoral e de baixíssimo orçamento ficou saturado de iniciativas em que os diretores revelavam a si mesmos, em suas casas, ou então os pais, mães, namorados. O valor e os limites deste formato foram debatidos à exaustão em festivais de cinema, e estudados por acadêmicos. Onde estaria a fronteira entre a humildade, por se oferecer ao público sem idealizações, e o egocentrismo, a incapacidade de se interessar por um tópico diferente de si próprio? Em tempos de selfies e redes sociais, o questionamento se faz importante. Alguns diretores buscaram o autorretrato erótico (Gustavo Vinagre, Fábio Leal), confessional (Petra Costa, Maria Clara Escobar), voluntariamente conflituoso (Letícia Simões, Bruno Risas). Todas continham maior ou menor grau de ficcionalização e controle narrativo, sendo a espontaneidade impossível dentro do registro de si. O período da pandemia favoreceu este tipo de abordagem ensimesmada, seja de maneira vaidosa ou crítica. Artistas como Grace Passô utilizaram a clausura para imaginar uma distopia. Allan Ribeiro se volta à virtude, tão desgastada pela cinematografia recente, do "fazer verdade”, da revelação de si enquanto ato de coragem e recusa de um cinema espetacular.

O terceiro sintoma, decorrente do anterior, reside no longa-metragem retórico, cuja qualidade encontra-se em sua existência. Neste caso, quando menor, melhor; quando mais trivial, mais intenso soará. Ribeiro embarca numa obra-processo, aparentemente sem roteiro prévio nem conceito elaborado. O Dia da Posse fornece a impressão de ter nascido na mesa de montagem onde, uma vez reunidos os fragmentos de conversas, buscou-se uma ordem em que pudessem dialogar e talvez construir uma narrativa autossuficiente. O efeito é tão agradável, no sentido da fluidez, quanto frouxo no que diz respeito à ambição artística. A captação digital de baixa qualidade não é nem explorada a fundo, para finalidade voluntária e assumida (transformar o pixel em textura, discorrer a respeito da produção da urgência e da democratização do acesso ao ato de filmar), nem disfarçada por bom uso de luz e enquadramentos. A luz de lâmpadas domina as conversas nos cômodos, os corpos são posicionados no centro da imagem, as imagens dos vizinhos restam, na maior parte das cenas, coladas ao som referente. Para o bem ou para o mal, o cineasta busca uma abordagem de conforto, sem atritos, provocações pela edição ou discurso, nem extrapolações e ousadias - um cinema documental no sentido estrito do retrato de algo que, em determinado período da vida, ocorreu em frente às câmeras. O ça a été de Roland Barthes remete à virtude singela de captar algo que um dia existiu. Talvez o projeto carregue um significado afetivo maior para seus criadores do que para o público.

O documentário aponta para diversos caminhos interessantes, porém castrados pela criação. O olhar frequente à janela dos vizinhos sugere a possível análise autorreferencial do voyeurismo, da sensação de escapismo em nossa prisão doméstica por meio da vida imaginária de terceiros. Ora, o motor da pulsão pelo olhar é logo abandonado. No terço final, a montagem revela trechos em que Allan dirige Brendo, repetindo cenas e condicionando movimentações. O outro lado da moeda - a ficcionalização se assumindo enquanto tal, apesar da aparência improvisada - seria capaz de despertar atritos interessantes, mas o recurso se interrompe a seguir. A questão da memória - o contraste entre a vida pobre na Bahia, e o contexto de classe média no Rio de Janeiro - geraria uma reflexão poderosa, caso fosse aprofundada. O brincar-de-política, quando o protagonista encena discursos aos eleitores imaginários, carregam potencial para discutir a representatividade democrática, a consciência política da sociedade contemporânea, sua capacidade de argumentação e debate para além das curtidas nas redes sociais. Até que ponto vai o discurso de Brendo? Quem ele atinge? Quem o contesta, e de que maneira sua consciência de classe amadureceu ao longo do tempo? Não sabemos. Sempre que o longa-metragem ameaça enveredar por um caminho contestador, a montagem segura as rédeas firmes no elogio cotidiano, preso ao eterno presente.

A expectativa de debate político, em função do título, também se frustra. O Dia da Posse faz referência tanto ao início do governo Bolsonaro quanto à definição dada por Brendo a respeito do termo "posse", relacionada à tomada de poder e à autonomia dos cidadãos comuns. Este terreno, igualmente fértil, é abortado. Restam respiros de uma poesia fácil: os pés caminhando na areia, os passarinhos voando no céu - trechos que, na ausência de contextualização, tornam-se tão universais quanto impessoais. (A multiplicação dos registros de natureza e de bem-estar em plena pandemia, ou seja, a afirmação de felicidade nas redes, seria outro belo tópico do qual o documentário passa longe). Caso fosse lançada quinze anos atrás, esta obra menos provocadora do que os potentes Esse Amor que nos Consome (2012) e Mais do que Eu Possa me Reconhecer (2015) talvez despertasse certo frisson pelo recurso ao autocinema, ao cinema-a-qualquer-preço, ao filmar pelo gesto de filmar. Seria visto como afronta ao sistema, contraponto às produções comerciais e aos títulos polidos de festivais internacionais, e um empoderamento de novas subjetividades por meio da câmera. Em 2021, marcado pela familiaridade com a estética dos smartphones, o dispositivo de telas filmando telas e o cinerretrato de pequenezas íntimas se traduz numa proposta pouco intrigante. No momento em que vislumbramos a saída da pandemia, o cinema jovem, autoral e de baixíssimo orçamento precisa começar a pensar em ferramentas estéticas e discursivas de ruptura, capazes de representar a nova relação com o espaço externo, com o outro e com a exposição de si próprio.

Filme visto online no 10º Olhar de Cinema: Festival Internacional de Curitiba, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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