Crítica
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Crítica
André Novais Oliveira é um dos principais cineastas brasileiros na atualidade. Diretor de Ela Volta na Quinta (2014) e Temporada (2018), ele possui a raríssima capacidade de capturar a beleza dos momentos aparentemente banais no cotidiano de personagens comuns. Seus diálogos repletos de naturalidade e a maneira não menos espontânea com que as pessoas de seus filmes interagem entre si podem nos passar a falsa impressão de tarefa simples. Contudo, uma das coisas mais difíceis dessa arte frequentemente utilizada para ressaltar o espetacular é reproduzir a naturalidade do dia a dia e, ainda, extrair dela algo genuinamente cinematográfico. O mineiro de Contagem continua retendo essa ternura da rotina em O Dia que Te Conheci. O protagonista é Zeca (Renato Novaes), funcionário da biblioteca de uma pequena escola que tem sérias dificuldades para acordar cedo e assim cumprir a sua obrigação profissional. Essa missão diária que se apresenta como tarefa árdua é o assunto da primeira cena, na qual Zeca tem um diálogo despojado com o amigo que divide a moradia com ele. O realizador enfatiza o tom singelo e até gracioso do pedido: “me acorde, nem que tenha de jogar água em mim”. Ele gera um efeito cômico sutil (mas muito eficiente) na manhã seguinte, quando o colega de casa precisa colocar em prática a operação “acordar o Zeca”. Dali em diante, uma jornada de contratempos.
Os diálogos de O Dia que Te Conheci parecem despretensiosos, nascidos naturalmente de um cotidiano que não pode ser totalmente previsto/controlado ou até da falta de assunto que cria lacunas a serem preenchidas com papo furado. Como quando Zeca encontra a mãe de uma aluna logo depois de receber uma notícia desagradável. Enquanto ela está sendo simpática ao tagarelar sobre a beleza de seguir a vocação, acrescentando como a sua menina gosta de frequentar a biblioteca, ele responde apenas com palavras e gestos protocolares. Até porque provavelmente a sua cabeça está a mil por hora diante das incertezas do futuro. Mas, André Novais Oliveira não sublinha o drama, pois parece mais interessado nas sutilezas dessa dinâmica humana, na troca que começa como monólogo e vai evoluindo para um diálogo. À medida que a fala da desconhecida vai fazendo algum sentido para Zeca, ele se sente à vontade para parabeniza-la pela inteligência, bem como pela empolgante curiosidade da filha e arriscar um descolamento momentâneo dos problemas que se aproximam depois da dura sofrida na escola. Essa naturalidade fascinante também é perceptível em toda a sequência envolvendo a quebra do ônibus. O sujeito atrasado ainda é vítima da má condição do transporte público da grande cidade, como se fosse impedido pelo destino, ou algo que o valha, a permanecer nesse trabalho.
A segunda conversa indicativa que Zeca tem é com o rapaz que o convida a comer um pastel enquanto ambos esperam a próxima condução. André Novais Oliveira coloca nessa interação um pouco de tudo, da observação da banalidade à aventura marcada pela corrida sobre uma passarela a fim de evitar ainda mais atrasos e possíveis broncas. Zeca é um quase personagem mitológico desprovido de todo heroísmo e pompa, alguém que cumpre pequenas odisseias diariamente como convém a um rapaz proletário que mora afastado do local de trabalho. Zeca também é uma figura chapliniana tragicômica que não tem apenas dificuldade para acordar por conta da medicação psiquiátrica tomada para lidar com a depressão, pois também enfrenta obstáculos para se comunicar com as pessoas. Isso é perceptível em todas as conexões que ele estabelece nas 24 horas contempladas em O Dia que te Conheci. O último dos diálogos saborosos desse personagem cativante em sua normalidade é com Luisa (Grace Passô), secretária da escola que lhe dá a tal notícia fatídica e com quem nunca tinha trocado mais do que poucas palavras sem importância. A conversa entre eles vai escalando da simples formalidade até chegar ao sutil e mútuo interesse romântico, passando pela constatação da escassez de pessoas negras no estabelecimento de ensino e a insuspeita dependência comum de medicamentos psiquiátricos.
Grace Passô e Renato Novaes, que tinham vivido um casal romântico em Temporada, voltam a demonstrar muito entrosamento em O Dia em que Te Conheci. Ambos expressam com tintas agridoces as tendências farmacológicas da geração que derruba tabus e começa a conversar sobre depressão, ansiedade e psicose de modo corriqueiro, às vezes entre uma cerveja e outra. Aliás, é indicativa disso a cena em que Luísa “confessa” também necessitar de medicamentos controlados para ter uma vida menos paralisante. Nela, André Novais Oliveira comprova a sua capacidade rara de extrair algo profundo do trivial, sem com isso perder de vista a graça que transforma seus filmes em territórios afetivos e calorosos. Sem ambicionar mais do que a construção de um retrato singelo dessas 24 horas da vida de um sujeito como vários outros, o realizador segue demonstrando interesse por aspectos ordinários da vida, ou seja, quebrando um pouco a ideia de que o cinema se (e nos) apaixona estritamente pelo incomum. Os conflitos da mais nova e bem-sucedida obra da Filmes de Plástico (produtora que virou sinônimo de qualidade nos últimos anos) são da ordem do habitual, daquilo que pode acontecer (ou que talvez já tenha acontecido) a qualquer um. O resultado é de uma sensibilidade comovente, traço comparável em importância apenas à ternura que envolve os personagens como num abraço.
Filme visto durante a 25º Festival do Rio (2023)
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Mais uma maravilha do André Novais e da Filmes de plástico ! Suave, divertido e comovente .