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Crítica


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Sinopse

Determinada a ir à escola numa vila de pescadores, onde a educação feminina é considerada tabu, Ekah possuiu um desejo enorme de romper barreiras e colocar abaixo os preconceitos. Ela vai se deparar com o passado de seu pai.

Crítica

Pra começar, não há diário algum nas quase duas horas e meia de duração deste O Diário do Pescador. Já pescador há, mas se trata de um personagem secundário. Ou seja, se o título é problemático, ao menos deveria servir como alerta para o que o filme do diretor Enah Johnscott irá apresentar ao longo de sua narrativa. Por mais que se tenha ciência de que se trata de uma produção vinda de um país com nenhum histórico no meio cinematográfico – Camarões, na África – é importante não assumir uma postura colonialista, deixando de analisar o resultado com condescendência, o que seria tão facilitador quanto humilhante aos realizadores. Afinal, mesmo diante dos seus pares, esta é uma obra que deveria se envergonhar das supostas bandeiras que levanta. Pelo contrário, as ostenta como se, ao expor tais argumentos, já tivesse feito o suficiente. O que não chega nem perto de ser verdade. É preciso assumir e defender suas posições, não só pela forma escolhida, mas também pelo modo crítico como irá desenvolver sua história – algo que, assustadoramente, não acontece por aqui.

O tal pescador do título é Solomon, interpretado por Kang Quintus, um nome forte na cultura camaronense – além de ator, já atuou em outros projetos como diretor e roteirista. Ele foi deixado pela esposa, e cuida sozinho da filha, a pequena Ekah (Faith Fidel). Enquanto passa os dias no mar a pescar, é a garota que cuida do casebre onde moram, dos peixes que ele captura e da venda para as moradoras da vila. Entre essas está a professora Bihbih (Damarise Ndamo), uma mulher de fala direta e traços retos. Com ela não há meias palavras, e seus alunos sabem disso. Mesmo assim, Ekah gostaria de ser uma dessas crianças que frequentam sua classe. Acontece que isso é algo que o pai não permite. Afinal, há poucos anos, quando a esposa insistiu em começar a estudar, ele cedeu. E o que viu com uma transformação tão radical na mulher que terminou com o abandono do lar. Algo que não permitirá que aconteça com aquela que lhe restou.

O desenrolar dos acontecimentos, no entanto, tropeça a todo instante em uma total falta de conhecimentos técnicos: se verifica uma absoluta ausência de noção a respeito de conceitos básicos de filmagem, como melhor estruturar um plano e contraplano, a importância da iluminação ou mesmo a influência da montagem na construção da trama. Assim, o que o espectador mais insistente irá presenciar serão passagens com o branco estourado, diálogos desprovidos de eixo e um excesso de flashbacks que mais confundem do que auxiliam na organização dos eventos. Os atores, a maioria estreantes, dão a impressão de estarem cada um em um filme diferente, como se não houvesse uma orientação capaz de direcioná-los em busca de melhores resultados. Não há coesão nas posturas e atitudes – aquele que é simpático, na cena seguinte pode estar sendo grosseiro, por exemplo – deixando o conjunto aleatório e imprevisível.

Porém, se a estrada é esburacada, o veículo é ainda mais tortuoso. Johnscott deixa transparecer uma vontade de fazer do seu filme um meio de denúncia e reflexão, mas esquece que, antes disso, é preciso saber desenvolver seu enredo num modo minimamente envolvente. Assim, alonga-se além do necessário, apenas para reforçar redundâncias e aprofundar o caráter melodramático e intolerante de suas escolhas. Bihbih não é uma boa professora – basta ver que todos os seus alunos regulares estão muito aquém do razoável – mas, por se esforçar com Ekah, acaba enaltecida. O mesmo acontece com Solomon, que toma a pior das atitudes para impedir que a filha estude – prefere dá-la em casamento, ainda que tenha apenas 12 anos. E quando a menina retorna declarando que é “estuprada diariamente” (são essas as exatas palavras que usa), ele vira as costas, afirmando que ela, agora, “é problema do marido”. Mas, quando descobre que foi enganado pelo irmão – tio da garota, que a usou para pagar uma dívida – e por isso se mostra arrependido, o próprio filme se encarrega de perdoá-lo.

O Diário do Pescador é um filme repleto de boas intenções. A questão é que, dessas, como bem se sabe, o inferno está cheio. De nada adianta oferecer um contexto que envolva temas urgentes, como educação e a escravidão sexual de crianças, ainda mais dentro de uma realidade tão carente de atenção social, ao mesmo tempo em que defende tais condutas como se fossem apenas resultado da ignorância, e não uma prática condenável até em sua última instância. O uso da figura real de Malala – uma jovem que lutou pelo direito de estudar e que por isso foi vítima de atentados contra sua vida – é não apenas mal aproveitada, mas quase desrespeitosa, pois reduz seus esforços a uma mera estratégia política (a falta de controle das autoridades) ou de aparências (a necessidade de não apenas participar, mas também de se destacar em um concurso estudantil de repercussão nacional). Os elementos para um discurso de efeito até se encontram, mas são tão mal manejados, e dispostos sem jeito ou trato, que o todo, ao invés de servir aos seus propósitos, provoca reação adversa, de dispersão, tornando irrelevante um debate que não pode mais ser desprezado em pleno século XXI.

 

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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