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Sinopse

O Doutrinador é Miguel, um agente federal altamente treinado que vive num país cujo governo foi sequestrado por uma quadrilha de políticos e empresários. Uma tragédia pessoal o leva a eleger a corrupção endêmica brasileira como sua maior inimiga. E ele começa a se vingar da elite política em pleno período de eleições presidenciais, numa cruzada sem volta contra a corrupção.

Crítica

Uma realidade consumada em Hollywood, o cinema baseado em personagens das histórias em quadrinhos ainda engatinha ao redor do mundo. Se na França Asterix & Obelix fazem sucesso (já foram quatro longas em live action até hoje), essa é a exceção que confirma a regra. E no Brasil não é diferente. Podemos lembrar que algumas tentativas tímidas, como Ed Mort (1997) – baseado nas tiras de Luis Fernando Verissimo – ou O Menino Maluquinho (1995) – a criação de Ziraldo chegou a ganhar uma continuação em 1998 – mas não a ponto de gerar uma febre a respeito. Isso, é claro, até 2018. Neste ano já tivemos Motorrad (2017), inspirado nos personagens de Danilo Beyruth, e Tungstênio (2018), adaptação da graphic novel de Marcello Quintanilha. Nada, no entanto, que se compare, seja em expectativa ou em tamanho de produção, com O Doutrinador, de Gustavo Bonafé. Afinal, este é o primeiro a ter como protagonista um herói – ou melhor, um anti-herói – em uma trama policial de aventura, bem ao estilo dos grandes fenômenos da Marvel ou DC Comics. Se o público irá responder à altura, esse é o mistério. No entanto, os realizadores fizeram sua parte com bastante desenvoltura, atentos à tudo que a cartilha do gênero manda, e o resultado não fica nada a dever aos seus irmãos estrangeiros.

E por que anti-herói, afinal? Pelo simples fato de que Miguel (Kiko Pissolato), quando em ação por baixo do manto d’O Doutrinador, não é um exemplo a ser seguido – ainda que seus atos tenham como ponto de partida uma visão um tanto torta de justiça. Policial de uma força especial dedicada às grandes investigações, ele estava na equipe que há pouco prendeu o governador Sandro Correa (Eduardo Moscovis), acusado de corrupção e desvio de verbas. O político, no entanto, é raposa velha, e não só consegue se livrar da prisão, como também lança sua candidatura à presidência do país. É tudo parte, como ficamos sabendo, de um jogo político muito mais sujo e intrincado do que qualquer suspeita poderia apontar. No entanto, após sua filha ainda criança ser morta vítima de uma bala perdida por falta de atendimento num hospital público, Miguel acaba transtornado pela dor. A válvula de escape vem na forma de uma jaqueta de couro e uma máscara de gás. Surge o Doutrinador, e o que ele quer é vingança, sem chance para explicações ou misericórdia.

Correa é apenas o primeiro da sua lista – o sangue explode na tela, e a sequência de invasão ao palácio do governo estadual é realmente tensa e bem editada, mostrando que ninguém aqui está para brincadeira, independente do lado da tela em que se encontre. Os realizadores sabem que num longa como esse, o enredo precisa ser funcional – não há reviravoltas inesperadas, o entendimento é rápido e as reações imediatas – e o visual precisa compensar qualquer carência dramática, seja pelo aspecto dos personagens, os cenários escolhidos ou os efeitos das ações. Estamos na cidade fictícia de Santa Cruz, e os políticos envolvidos – alvos de cada ataque do Doutrinador – receberam nomes inventados. Essa, aliás, foi uma das principais mudanças em relação às histórias em quadrinhos criadas por Luciano Cunha, que originalmente não disfarçava ter se inspirado em eventos e figuras reais. Talvez por isso, tenha demorado tanto para encontrar uma editora disposta a bancar suas publicações. O sucesso não veio da noite para o dia, mas assim que chegou, motivado pelos protestos que tomaram o Brasil a partir de 2013, se fez presente com força total. Tanto que O Doutrinador não só chega agora às telas como filme, mas ao mesmo tempo ganhou um corte maior, com novas tramas, personagens e desfechos, transformado em série que irá ao ar na televisão em 2019.

Este, é bom ter em mente, é apenas o primeiro passo da criação de um universo compartilhado a partir das criações de Cunha. Continuações já estão sendo discutidas, assim como adaptações de outros personagens. Assunto é o que não falta, pelo jeito. E O Doutrinador confirma-se uma escolha acertada para esse começo. Kiko Pissolato se entrega de corpo e alma ao projeto que pode fazer dele um astro. Com corpo e postura certa para o que o papel exige, se sai bem nas cenas mais dinâmicas, e também não compromete nos momentos dramáticos. Natália Lage, como a ex-esposa, Tuca Andrada, como o delegado que é seu chefe, e até Moscovis, são participações mais pontuais, mas tiram o elenco de qualquer viés mais genérico. No entanto, as revelações são os novatos Tainá Medina, como a hacker que logo descobre o segredo de Miguel e acaba se tornando seu braço direito, e Samuel de Assis, o melhor amigo e o primeiro a suspeitar de suas atividades secretas, a ponto de partir ao seu encalce para obrigá-lo a lidar com as demandas da lei após cada morte – ou, melhor dizendo, execução – por ele empreendida. São os dois que, assim como o protagonista, mostram que o potencial faz jus às expectativas levantadas.

Assim como O Justiceiro (2017), O Doutrinador é do tipo que atira primeiro e pergunta depois – se é que chega a fazer qualquer tipo de questionamento. Ele mata aqueles que comprovadamente possuem muitos erros nas costas – mas cabe a ele esse julgamento? É claro que não, e o filme de Bonafé é maduro o suficiente para não deixar que tal posicionamento passe em branco. E se não perdoa os atos de Miguel, não esquece de apontar que cada erro que ele comete, ainda que em nome de uma dor que lhe foi primeiro infligida, possui consequências e punições dentro dos ditames da Justiça, por mais que essa esteja combalida. O fato da história estar ambientada nos bastidores de uma campanha presidencial, com um favorito nas pesquisas ser notoriamente corrupto – e dado aos esquemas mais escabrosos para conquistar o poder – não é mera coincidência, e esse discurso não pode ser ignorado. Ainda assim, o que temos em cena é entretenimento, diversão que pode atingir interesses mais imediatos, além de oferecer elementos para aqueles atrás de reflexões mais elaboradas. É o cinema brasileiro entrando com os dois pés em um ambiente que até então lhe era estranho, mas que aqui demonstra maturidade e competência para se mostrar de igual com seus pares. Com tudo de bom e ruim que isso significa.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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