Sinopse
Depois de um acidente grave que impôs um fim precoce a sua bem-sucedida carreira como dublê, um rapaz precisa descobrir o paradeiro de um astro de cinema que sumiu misteriosamente, desmascarar uma conspiração e ainda conquistar o amor de sua vida.
Crítica
Nos anos 1980, o cinema feito nos Estados Unidos se viu numa encruzilhada. A Nova Hollywood havia chegado ao fim, a produção independente ainda não estava com as máquinas aquecidas e os grandes autores que, com muito custo, conseguiram se livrar das amarras dos tradicionais estúdios, só tempos depois lançariam suas maiores obras. No meio desse movimento, duas correntes começaram a se firmar: primeiro, as franquias cinematográficas, sagas que passaram a ganhar duas, três, quatro sequências encaminhadas uma atrás da outra. E, por fim, o estabelecimento de nomes de impacto, o astro capaz de carregar sozinho audiências inteiras até às salas de cinema apenas com base na sua popularidade. Essa prática meio que perdeu força com a virada do século, principalmente após o estabelecimento dos “universos compartilhados” (Marvel, DC e afins). Ryan Gosling, no entanto, parece disposto a nadar contra a corrente. Mesmo sem se render a fórmulas fáceis, ele já conseguiu três indicações ao Oscar – a primeira por uma produção ínfima que quase ninguém viu, a segunda por um musical numa época em que o gênero havia caído em desuso e a terceira por um filme de boneca desacreditado enquanto projeto, mas que se confirmou como o maior campeão de bilheteria do ano – e vem acumulando títulos de sucesso, seja no streaming (Agente Oculto, 2022) ou na tela grande. O Dublê, sua mais recente investida, parece deslocado no tempo – cairia perfeito como uma matinê três ou quatro décadas atrás – mas, devido ao seu imenso carisma, termina por valer o preço do ingresso.
Por mais que tenha pose de galã, com porte atlético e beleza do tipo de estampa capa de revistas, Gosling é, também, um excelente comediante. Longas como Barbie (2023) ou Dois Caras Legais (2016) – se você não assistiu a esse último, por favor, largue tudo e vá agora conferir essa pequena pérola – haviam indicado o quão versátil o astro consegue ser quando em boas mãos e nas condições ideais. E dessa vez essa mesma conjunção parece ter se repetido. Não só a química entre ele e sua parceira de cena, Emily Blunt, funciona em plena sintonia – como ela já havia demonstrado ao lado de outros tipos estrelados, como Tom Cruise, Dwayne Johnson ou Matt Damon – como também a impressão é de que nos bastidores tudo deve ter sido tão ou mais divertido quanto o que se vê na tela. David Leitch é o mesmo realizador de Deadpool 2 (2018) e Trem-Bala (2022), duas apostas que investiam tanto na ação como num humor desenfreado, apoiado em diálogos rápidos e repletos de tiradas de duplo sentido, mas também em esforços que vão até os limites do impossível. Nesse ponto, Gosling se apresenta como um parceiro à altura das performances que Ryan Reynolds ou Brad Pitt alcançaram nestas aventuras anteriores.
Se o protagonista responde por grande parte do quão O Dublê é bem-sucedido em seu intento, muito também se deve ao engenhoso roteiro escrito por Drew Pearce (Missão: Impossível – Nação Secreta, 2015), que por sua vez se baseou na série Duro na Queda (1981-1986), criada por Glen A. Larson – criador de outros tantos clássicos televisivos, como Magnum (1980-1988). Um dos principais twists – ou seja, pontos de virada – acontece logo no começo da trama. Um ano se passa, a situação é outra, e o herói é chamado para voltar à ativa, mesmo ele próprio se considerando “enferrujado” para tanto. O que o motiva, porém, é o amor. Uma razão tão simplista poderia jogar o enredo numa vala melodramática, clichê e açucarada. No entanto, a direção assumida é oposta. Tal qual gato e rato, os dois – a diretora do filme, Jody Moreno (Blunt, deixando-se levar), e o dublê do astro principal, Colt Seavers (Gosling, aproveitando cada segundo como se estivesse em um parque de diversões) – irão se aproximar e se afastar na mesma medida, gerando uma dinâmica envolvente e curiosa, a partir da qual qualquer coisa pode acontecer no passo seguinte. Até onde irão nesse solta-e-agarra? Eis o maior dos mistérios.
Mas se fosse apenas isso, o que faria do conjunto algo diferente do que já se vê na maioria das comédias românticas que volta e meia infestam o circuito? É a partir desse ponto que o conjunto começa, enfim, a fazer efeito. Colt não é o centro das atenções. Ele é, afinal, o dublê do verdadeiro astro – que, no caso, vem a ser Tom Ryder, papel que cai como uma luva no bem torneado Aaron Taylor-Johnson. É interessante vê-lo não tendo o maior destaque – sua condição, atualmente, é de imenso estrelato – mas como o oposto, o antagonista, aquele pelo qual todos torcem contra. Essa é uma história, portanto, na qual os olhares se direcionam às margens, e não quanto ao que está acontecendo no meio de tudo. Quanto Ryder desaparece, Seavers é convocado às pressas para substituí-lo nas tomadas finais de um milionário projeto, para que ao menos as filmagens sejam encerradas sem prejuízo para o estúdio e para a carreira da realizadora de primeira viagem, Moreno. Mas assim que retoma suas funções, aquele cuja função é passar desapercebido se vê enredado em uma rede de mentiras e assassinatos, e somente as habilidades aprendidas pela profissão poderão lhe garantir a segurança do próprio pescoço.
Ryan Gosling talvez seja ‘o último grande herói’ (nome de filme de Arnold Schwarzenegger dos anos 1990), e ele tem ciência disso. Sem recair ao apelo dos super-heróis (realmente importa quem está por detrás da máscara?) e abrindo mão de intermináveis sequências, como muitos dos seus colegas, ele é a razão de ser de O Dublê. Mais do que apenas o personagem-título, é o charme e a irreverência, a fisicalidade e o envolvimento, e por mais absurdo que seja o que está se desenrolando entre os personagens, é por ele – pela identificação e admiração – que as audiências seguem acompanhando cada um dos seus desdobramentos. A certeza do final feliz é imperativa, mas eis aqui uma proposta que vai além do seu desfecho: é o durante que justifica tamanho desprendimento e emoção. Longe de ser perfeito, serve para garantir o entretenimento de uma aposta despreocupada, ao mesmo tempo em que faz lembrar tempos bem mais inocentes e divertidos. E se cinema não é (também) isso, para onde teria ido a sua ‘magia’?
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