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Sinopse

Rodrigo é o jovem herdeiro de uma grande fazenda, responsável pela colheita, pelos funcionários e pelos animais. Ele divide seu tempo entre os negócios e o hospital, onde busca algum diagnóstico para a saúde frágil de seu bebê. O empresário contrata Carlos para lidar com o trator, forçando o novo empregado a se mudar para a região, ficando distante da esposa e de seu próprio bebê. Quando um acidente trágico ocorre no trabalho, a relação de força entre os dois homens é testada.

Crítica

Ocorre algo mágico quando um filme consegue transportar o espectador para um universo hermético, dotado de regras próprias, mas de aparência realista e identificável. O Empregado e o Patrão (2021) se passa nas fazendas de soja da fronteira entre Uruguai, Brasil e Argentina. Há competições locais de corrida a cavalo, maneiras pouco ortodoxas de testar a saúde de um bebê e um linguajar condensando o português e o espanhol. No entanto, este cenário soa coeso: os atores parecem ter ocupado aquelas terras a vida inteira, deslocando-se com conhecimento dos espaços, conversando em jargões interioranos integrados às atuações, vestindo roupas comuns, ocupando casas verossímeis. Poucas produções conquistam tamanha organicidade nas funções técnico-criativas: cenários e figurinos produzem a aparência de pessoas e lugares que encontraríamos nestas regiões, em casas comuns. Esta simplicidade aparenta fácil de obter, porém decorre de um equilíbrio raríssimo no cinema. Muitos diretores de arte e de fotografia tornam as casas miseráveis demais, ou as roupas excessivamente limpas, as casas inexplicavelmente escuras ou os cenários vazios de objetos. Junto ao uruguaio Manolo Nieto, o brasileiro André Novais Oliveira possui a receita deste naturalismo imersivo, onde a elaboração estética encanta justamente por não chamar atenção a si mesma.

Além disso, Nieto resgata certo ritmo do cinema autoral e maduro, seja pela montagem ou pela direção, que produz alívio perto da velocidade pop das obras concebidas para o streaming. Após uma revelação, a câmera deixa tempo para que o personagem saia de quadro, refletindo, enquanto o próprio espectador absorve o impacto da notícia. As cenas de abertura e encerramento representam pérolas da exploração do espaço-tempo: a narrativa se abre com um bebê sendo chacoalhado dentro de um lençol. Não vemos o rosto da pessoa que efetua os movimentos pendulares, nem a reação da criança. Seria um instante de ternura, de descaso, de agressão? Onde se encontram os responsáveis pela criança? As respostas chegarão, mas antes o drama solicita que o espectador efetue julgamentos sozinho. Instantes de violência se desenvolvem em silêncio, à distância, fora de quadro, ou de maneira sugerida. O encerramento oferece outra explosão (ou seria implosão?), quando uma troca de olhares alimenta interpretações radicalmente diferentes. Nesta aliança frágil entre dois pais – o rico, enfrentando problemas de saúde com o bebê, e o pobre, com uma filha saudável – jamais se sabe se o empresário e herdeiro Rodrigo (Nahuel Pérez Biscayart) se tornará o melhor amigo, ou o principal inimigo do faz-tudo Carlos (Cristian Borges), contratado para manejar o trator. Eles possuem filhos de idades equivalentes e, em fases distintas, enfrentarão uma tragédia relacionada aos pequenos.

Este paralelismo poderia se inserir numa história exemplar, fruto do destino. Ora, o roteiro jamais faz alarde da aproximação. O recurso serve para demonstrar as ferramentas à disposição do proprietário de terras e de seu funcionário quando atravessam uma questão semelhante. Partindo da premissa apropriada ao melodrama, Nieto retira a música (o melos) e o sentimentalismo, investindo na condução seca, e por isso mesmo, perturbadora. A imagem de um caixão de bebê carregado através do campo dispensa lágrimas, gritos e explicações. O corpo nu de uma mulher com cicatrizes profundas no ventre, a expressão cabisbaixa de um sujeito no corredor do hospital e um para-brisas coberto de sangue também falam por si próprios. O filme evita explicar qualquer gesto passível de compreensão por olhares e atitudes. A brilhante montagem efetua saltos temporais quase invisíveis, acentuando as relações de causa e consequência. A exemplo do argentino O Pântano (2001), com quem guarda boas semelhanças, O Empregado e o Patrão pode ser lido pela perspectiva de um conto moral a respeito das violências de classe, do machismo estrutural e do racismo discretamente tolerado, resultando na morte das crianças – são as próximas gerações que colhem os danos da implacável luta de classes. Sem surpresas, a corda estoura para o lado do mais fraco. O ótimo título sugere união e equivalência, algo irônico diante das condições que os separam. Outras associações seriam possíveis: o empregado contra o patrão, o empregado ante ao patrão, o empregado, mas o patrão. O autor toma a precaução de deixar Carlos em primeiro lugar. Na cena final, a câmera também escolhe de que lado prefere ficar.

Em paralelo, o protagonismo se divide entre os dois homens, e o ponto de vista mergulha na perspectiva de um e de outro, alternadamente. Seria fácil transformar Rodrigo num chefe malvado, e Carlos, numa vítima sofredora. Felizmente, o roteiro investe num mecanismo complexo, fugindo ao maniqueísmo e revelando as desigualdades sociais apesar deles. Quando a tragédia toma conta da fazenda, o chefe tenta ajudar à sua maneira, correta ou incorreta, diante do comportamento ambíguo do funcionário. Ninguém deseja a guerra que chega de fora, em função do grupo social que ocupam. A dupla pretende manter o acordo tácito que normaliza as explorações trabalhistas e os privilégios dos proprietários de terra, porém a sociedade ao redor força o embate simbolizado pela figura de um cavalo. O animal cobiçado por compradores pertence a Rodrigo, mas é cavalgado por Carlos, que pode vencer a corrida da cidade. Quem possui os méritos da eventual vitória? O detentor dos meios de produção ou aquele que opera a ferramenta? Se a classe operária tudo produz, a ela tudo pertence? O roteiro promove uma crítica política tão feroz quanto sutil, na chave da gradação, aumentando o estranhamento na dupla até a inevitável explosão prometida para o momento da corrida. Nieto introduz instantes de profundo sarcasmo e inteligência – vide o convite para um leilão, onde os donos esbanjam seu poderio financeiro aos empregados, e o olhar penetrante de uma mãe em luto ao bebê alheio. Os silêncios estão repletos de dor, ressentimento, ódio e medo.

Tamanho domínio do discurso se acompanha de um banquete estético. O diretor de fotografia Arauco Henández Holz explora magnificamente as baixas luzes, adentrando as casas, penetrando as florestas e os rios. Aqui, a câmera se move tanto quanto os personagens: através de um elegante e fluido scope, Holz consegue girar em torno de Rodrigo, aproximar-se da expressão bruta de Carlos e deslizar a atenção às patas do cavalo em movimento, beirando a abstração (Eadweard Muybridge vem à mente). Então, posiciona o cavalo e o veículo luxuoso lado a lado na estrada, representando o homem rico e o homem pobre, em aparente equivalência, até a inevitável separação. A câmera movimenta-se livremente em meio aos animais e parte sozinha para a colheita enquanto os indivíduos saem de quadro, valorizando a força dos indivíduos e sua pequenez face à imensidão do terreno. Nenhum enquadramento soa escolhido ao acaso, nem improvisado devido a dificuldades de produção. Há um motivo evidente por trás de cada conversa fora de quadro e cada ruído no quarto vizinho (a cena do prostíbulo). Nieto exercita um cinema do controle onde o mundo se adequa à câmera, não o contrário. Os deslocamentos de Rodrigo e Carlos pelo campo são minuciosamente acompanhados pela imagem, numa coreografia ensaiada e prevista. Enquanto alguns cineastas obtêm sua preciosidade da espontaneidade, o uruguaio privilegia uma construção estética na qual roteiro, fotografia e montagem transparecem um debate profundo entre os cabeças de equipe. Trata-se de uma concepção cerebral da arte, no melhor sentido do termo.

No elenco, atores profissionais se combinam com outros sem experiência, em resultado benéfico ao resultado. Nahuel Pérez Biscayart, interpretando um rapaz franco-hispânico como ele próprio, oferece um corpo confortável e maleável às situações mais adversas. É interessante que a polidez do ator se choque com o aspecto bruto de Cristian Borges e Fatima Quintanilla, cuja ausência de formação dramática acentua a diferença de oportunidades. Estes últimos são bem dirigidos, fugindo a uma expressividade artificial: Nieto busca extrair de marido e esposa exatamente os “olhos embotados de cimento e lágrima”, ou no caso, terra e lágrima, que podem oferecer. A dificuldade em extravasar falas e sentimentos serve perfeitamente à construção destes personagens potentes, contendo na garganta o grito de revolta em cada “sim, patrão” respondido automaticamente. Ao final, este filme de alma democrática questiona o princípio de igualdade: como dizer que Carlos e Rodrigo “nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, se a catástrofe mais universal de todas (a morte de um ente querido) aprofunda os abismos entre os dois? Eles estão juntos no título, no clímax, no desfecho. Ora, no final, um ficará com os cavalos, e o outro, com o carro; um se desloca a uma parte do terreno, e o outro, ao sentido oposto. Não há resolução pacífica possível a partir de uma situação de injustiça.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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